3
As Alegações do Materialismo e do Ateísmo
É muito comum uma confusão da posição do ateísta com uma atitude de mera indiferença em relação à existência de Deus. Muitas pessoas que se dizem ateístas não pararam um minuto para pensar seriamente na questão. Desse modo, quando se pergunta a estas pessoas as razões pelas quais não acreditam em Deus, elas se limitam a emitir uma opinião vulgar ou a repetir chavões. Na realidade, não dispõem de nenhum argumento: simplesmente carecem de qualquer concepção alternativa para as concepções teísta ou agnóstica. O ateísmo se caracteriza justamente por apresentar a mencionada concepção: é mais do que uma simples atitude de recusa baseada na mera opinião. Como observa muito bem E. Nagel:
(...) o ateísmo não deve ser identificado com a pura ausência de crença [sheer unbelief] ou descrença [disbelief] em algum credo de um grupo particular. Desse modo, uma criança, que não recebeu nenhum ensinamento religioso e nunca ouviu falar a respeito de Deus, não é um ateísta_ pois ela não está negando qualquer afirmação de caráter teísta. O mesmo pode ser dito do adulto, que se afastou da fé dos seus pais sem fazer nenhuma reflexão ou por uma franca indiferença em relação a qualquer assunto de caráter teológico. Ele também não é um ateísta_ pois ele não está desafiando uma visão teísta e não está professando qualquer ponto de vista sobre o assunto. Além disso, o termo “ateísta” tem sido historicamente usado como um rótulo abusivo para aqueles que não aderem a uma ortodoxia dominante [por exemplo: os antigos romanos chamavam os primeiros cristãos de ateístas, porque eles negavam as divindades romanas]. (Nagel, 1966, p.461).
É bastante comum também a confusão do ateísmo com o materialismo. Embora toda concepção ateísta envolva uma concepção materialista, uma concepção materialista não envolve necessariamente uma ateísta. A ciência contemporânea talvez seja o melhor exemplo desta última alternativa. No que diz respeito à sua visão do mundo físico, não há nenhum lugar para as noções de espírito e de Deus. Para todos os efeitos, a investigação dos fenômenos naturais está envolvida com as noções de matéria, energia e força. De acordo com os físicos, o universo é regido por quatro forças básicas: a gravitacional, a eletromagnética, a força forte e a força fraca. No entanto, não é correto dizer que a ciência é ateísta, simplesmente porque ela não se pronuncia a respeito de quaisquer questões envolvendo a existência de Deus ou a de uma dimensão cósmica invisível acima do mundo físico [um pressuposto que parece indissoluvelmente atrelado à própria concepção de Deus, para toda e qualquer posição teísta religiosa, pois, como já vimos, Deus não pode ser identificado com qualquer fenômeno do mundo físico].
A ciência não se pronuncia a respeito da existência de Deus ou de uma realidade suprafísica, porque tais questões não podem ser corretamente encaminhadas de acordo com o método científico, baseado em coisas tais como formulações de hipóteses e construção de testes experimentais (Popper, 1972). Como formular uma hipótese a respeito de Deus e submetê-la a um experimento capaz de confirmá-la ou falsificá-la?
Contudo, isto não impede que alguns cientistas tomem a ciência como base para considerações metafísicas e apresentem uma posição sobre a existência de Deus, seja para assumir um ponto de vista ateísta, agnóstico ou teísta. Ao procederem assim, eles já não se pronunciam como cientistas, mas sim como metafísicos. Não podem alegar que sua posição é científica, porque ela não está formulada de acordo com o método científico. Aqui é importante não confundir dois distintos usos do adjetivo “científico”: (a) algo em conformidade com os procedimentos usados pela ciência e (b) algo seguro, comprovado e confiável. A.F. Chalmers caracteriza muito bem (b) como um uso bastante disseminado, porém epistemologicamente inadequado:
Há abundância de provas da vida cotidiana de que a ciência é tida em alta conta, a despeito de um certo desencanto com ela, devido a conseqüências pelas quais alguns a consideram responsável, tais como bombas de hidrogênio e poluição. Anúncios freqüentemente asseguram que um produto específico foi cientificamente comprovado como sendo mais branqueador, mais potente, mais sexualmente atraente ou de alguma maneira preferível aos produtos concorrentes. Assim fazendo, eles esperam insinuar que a sua afirmação é particularmente bem fundamentada e talvez esteja além de contestação. (Chalmers, 1997, p.17, o grifo é nosso).
Ora, no domínio da ciência não há verdades incontestáveis e a história da ciência tem sido uma das mais fortes evidências disto. Na realidade, quando o adjetivo“ científico” é usado no sentido (b) passa a adquirir uma valoração alheia à verdadeira atividade científica no sentido (a). Uma das grandes conquistas da Idade Moderna [por volta do século XVIII] foi a da laicização do Estado. Antes o Estado adotava oficialmente uma posição religiosa [como fazem hoje os Estados islâmicos fundamentalistas] mas passou a adotar uma postura de neutralidade em relação aos cultos religiosos.
A liberdade de culto e o espírito de tolerância em relação à diversidade de visões religiosas antecipou e incentivou a convivência pacífica de posições políticas antagônicas, que é uma das características básicas da democracia. Outra grande conquista da modernidade foi a separação definitiva das jurisdições da ciência, da filosofia e da religião_ um processo lento e complexo que talvez tenha começado no século XVI ou XVII, mas que só se firmou definitivamente no nosso século.
No século XIX, ainda podiam ser encontradas ásperas polêmicas entre teólogos e darwinistas em que os primeiros defendiam a visão da criação do homem de acordo com o Gênese e os segundos, a visão evolucionista de C. Darwin (1809-1882) que via o homem como uma espécie que tinha se desenvolvido a partir de hominídeos aparentados com os símios [o chimpanzé e o orangotango, por exemplo].
Algumas confusões de caráter estritamente conceitual costumam ser geradas quando “dizer o mesmo que x” e “dizer coisas contrárias a x” são tomadas como expressões mutuamente exclusivas e exaustivas. Não há a menor dúvida de que se trata de expressões mutuamente exclusivas, mas elas não podem ser consideradas exaustivas, pois há uma terceira alternativa que consiste em “dizer coisas diferentes de x”. Uma anedota bastante apreciada pelos lógicos é bastante ilustrativa.
Conta-se que o califa Omar, quando chegou às portas de Alexandria, colocou para si mesmo aquilo que ele supunha constituir um dilema: “Ou bem os livros que estão na biblioteca de Alexandria dizem o mesmo que o Corão _ e neste caso são supérfluos_ ou bem dizem coisas contrárias ao Corão_ e neste caso são nocivos. Incendiemos, portanto, a biblioteca!”. Ora, os livros que lá estavam não diziam o mesmo que o Corão, nem diziam coisas contrárias a este livro sagrado: simplesmente diziam coisas diferentes das tratadas pelo Corão. Como sabemos, este livro religioso não trata de geometria, arquitetura, medicina, etc.
No século XIX, alguns cientistas, teólogos e filósofos acreditavam na existência de uma contradição entre a visão bíblica e a darwinista. Entregavam-se a ásperas polêmicas, justamente porque os partidários de uma posição acreditavam que a dos seus adversários era falsa. Se há ou não uma verdadeira contradição; se as duas posições assumiam pontos de vistas diametralmente opostos em relação à mesma coisa, isto é algo que não pode ser devidamente respondido em rápidas palavras. J. Watkins (1997, p.230) lembra que K. Popper compartilhava o desprezo de Canon Raven pelo conflito entre darwinismo e cristianismo como “uma tempestade em uma xícara de chá vitoriana”.
Mas podemos constatar que polêmicas dessa natureza, envolvendo uma visão religiosa e uma científica, são coisas bastante raras no nosso tempo, principalmente no espaço acadêmico das universidades em que os biólogos não costumam se pronunciar sobre questões religiosas e os teólogos não costumam se pronunciar sobre questões biológicas. Mas por que não? De um lado, não podemos desconsiderar a formação das próprias universidades. Estimulando a criação de especialidades, esta formação estimula também um solene desconhecimento por tudo quanto ultrapassa os limites de uma especialidade. Isto tem seus aspectos negativos, mas também têm seus aspectos positivos. Consciente da complexidade da sua área de estudo e investigação, um especialista sabe que a mesma complexidade pode ser encontrada nas áreas de outros especialistas. Cria-se, deste modo, um respeito recíproco baseado no reconhecimento da ignorância mútua.
De outro lado, há consciência de que uma polêmica como o referido debate do século XIX_ por envolver coisas de naturezas tão marcadamente diferentes como ciência e religião_ corre o sério risco de se transformar em um diálogo de surdos, como é o caso do famoso debate sobre a existência de Deus, transmitido pela BBC em 1948, envolvendo F.C. Copleston _ padre jesuíta, filósofo e historiador da filosofia _ e B. Russell (Edwards & Pap, 1966, pp. 473-489) _ um filósofo agnóstico que se notabilizou por seu interesse pela ciência e por sua forte rejeição do cristianismo (Russell, 1969). Russell sempre se mostrou muito mais competente na defesa da sua posição agnóstica do que no ataque desferido à religião cristã. Embora não concordamos com as suas objeções nem com as de F. Nietzsche, temos de reconhecer que as do primeiro conseguem ser mais pífias e superficiais do que as do segundo .
Não resta dúvida de que o filósofo britânico tinha duas grandes qualidades: seu sólido conhecimento de matemática e seu admirável sense of humour. Pouco antes da Primeira Guerra, Lorde Russell foi preso por causa do seu intenso ativismo pacifista. Ele mesmo conta que, ao chegar ao presídio, teve de responder um questionário de praxe sobre alguns dados pessoais. Quando o funcionário perguntou sua religião, Russell respondeu sem hesitação: “agnóstico”. O funcionário então disse: “Nunca ouvi falar disto; soletre, por favor”. Tendo atendido ao pedido do funcionário, este mesmo completou: “Bem, há muitas religiões, mas acho que todas elas cultuam o mesmo Deus”. Russell acrescentou que este episódio manteve seu bom humor no cárcere por uma semana (Russell, 1965).
O materialismo científico está estritamente ligado a uma visão do mundo físico, tal como este costuma ser investigado pela física, pela química, pela biologia e as demais disciplinas componentes das chamadas “ciências naturais”. Tal concepção não tem absolutamente nada a dizer sobre coisas tais como o espírito e Deus.
Diferentemente do materialismo científico é o materialismo filosófico, que se caracteriza por tomar o primeiro como ponto de partida para a construção de uma visão abrangente envolvendo tanto o mundo natural como o mundo do espírito ou, caso se queira, o mundo da cultura humana. É justamente este segundo tipo de materialismo que promove uma articulação da concepção materialista com a ateísta. Concepções deste tipo podem ser encontradas muitos séculos antes de Cristo nas civilizações orientais _ na China e na Índia principalmente_ e podem ser encontradas em alguns filósofos pré-socráticos. Como já vimos, Xenófanes de Colofão_ apesar da sua aguçada crítica do antropomorfismo_ não pode ser considerado um filósofo ateísta: é muito mais um crítico do politeísmo característico da mitologia olímpica.
O mesmo já não podemos dizer dos atomistas Leucipo de Mileto [que apresentou suas concepções entre 450 e 420 a.C.] e seu discípulo Demócrito de Abdera (460-370 a.C.). Para este último, tudo o que existe é composto de duas coisas: os átomos e o vazio. Até mesmo isto que chamamos de alma ou espírito não passa de um conjunto de átomos separados por espaços vazios. A concepção atomista proveniente de Leucipo e Demócrito foi retomada posteriormente por Epicuro (341-270 a.C.) e por Lucrécio (99-51 a.C.) e, após um longo período de esquecimento, foi reassumida no século XVII por um contemporâneo de Descartes: Pierre Gassendi (1592-1655).
Tais concepções filosóficas diferem significativamente da concepção atomista da física por dois fatores básicos: (a) Para os filósofos, o atomos, como diz a própria palavra grega, é “indivisível”. Porém, para os microfísicos, o átomo é um verdadeiro mundo em miniatura. (b) Para os filósofos, até a alma (ou o espírito) é um composto de “átomos sutis”. Porém, para os microfísicos, só tem sentido falar em “átomo” em relação à estrutura molecular da matéria. O materialismo filosófico do século XVII_ quase sempre apoiado no atomismo filosófico anterior à visão científica da microfísica_ encontrou novas fontes de embasamento no materialismo sustentado por alguns dos pensadores iluministas no século XVIII, como é o caso de d’Holbach (1723-1789) e de La Mettrie, (1709-1751), entre outros.
O barão d’Holbach publicou em 1770 um trabalho intitulado Sistema da Natureza em que sustentava uma abrangente visão materialista e ateísta. [Nos capítulos 11 e 12 da referida obra ele tentou mostrar que o livre-arbítrio é uma ilusão (Edwards & Pap, 1966, pp.10-24)]. Temendo que seu ponto de vista fosse confundido com um materialismo grosseiro e vulgar [uma visão opiniática encontrável em quase todos os tempos e povos] procurou mostrar que ela não era incompatível com a moral. As obrigações impostas pela moralidade não eram necessariamente decorrentes de uma visão religiosa do mundo e, assim sendo, a moralidade religiosa podia ser perfeitamente substituída por uma moralidade laica e ateísta.
De nossa parte, entendemos que uma visão filosófica materialista-ateísta não implica um desprezo pela moralidade, nem uma renúncia a esta mesma. Ao longo da história, diversos filósofos materialistas e ateístas procuraram formular uma filosofia moral. Se sua posição é sustentável ou não, isto é um outro problema. La Mettrie, por sua vez, tinha uma formação médica. Trabalhou como cirurgião do exército durante a guerra da sucessão austríaca entre 1743 e 1745. Neste mesmo ano, publicou uma História Natural da Alma. A concepção materialista-ateísta contida nesta obra provocou uma forte reação na França, de tal modo que La Mettrie teve de fugir para não receber uma lettre de cachet, ou seja: uma arbitrária ordem de prisão dada pelo próprio rei.
Refugiado nos Países Baixos, ele publicou em 1748 sua obra mais influente: O Homem-Máquina em que, como sugere o título, não havia nenhuma diferença entre o organismo humano e as engrenagens de uma máquina de funcionamento mecânico. Mesmo nos Países Baixos, em que na época reinava um forte espírito de tolerância, esse livro produziu grande repulsa. O filósofo teve de procurar abrigo em outro lugar e foi convidado para a corte de Frederico, o Grande, da Prússia_ um soberano agnóstico em um Estado laico, que costumava proteger pensadores ousados e irreverentes.
Mesmo aqueles que, por questões de caráter religioso, não encaram com bons olhos concepções filosóficas ateístas e materialistas, são obrigados a reconhecer que muitas destas concepções tiveram alguns aspectos positivos e abriram caminhos para a investigação científica. O atomismo de Leucipo, Demócrito, Epicuro, Gassendi e outros abriu o caminho para uma investigação científica da estrutura da matéria. A visão de La Mettrie, apesar de partir de uma analogia repelente e não-inteiramente válida, abriu caminho para uma investigação científica do funcionamento do organismo humano. Como diz S. Blackburn:
O materialismo de La Mettrie é firmemente baseado na física, na química, na anatomia e na fisiologia da sua época. Mas sua firme sustentação da dependência da função mental em relação ao estado do sistema nervoso central e do cérebro, aliada à sua abordagem resolutamente científica da dinâmica do movimento e da motivação, fizeram dele o primeiro exemplo disto que é hoje a dominante abordagem biomédica fisicalista e funcionalista da natureza dos seres humanos. Na ética, La Mettrie viu a felicidade como a meta natural de cada organismo (um bem semelhante à saúde). (Blackburn, 1996, pp.210-11).
A idéia de que a felicidade é o nosso bem supremo [summum bonum] já havia sido defendida por Aristóteles muitos séculos antes. Mas, no caso de La Mettrie, assim como no de outros materialistas-ateístas, fica bastante difícil de compreender como articular as idéias de um homem concebido como uma máquina ou como mero organismo biológico e a de um homem voltado para a busca da felicidade entendida_ segundo entenderam Aristóteles e outros_ como a realização de potencialidades eminentemente humanas dentro de uma comunidade humana. A sobrevivência material pode ser concebida como a finalidade de todo e qualquer ser vivo_ não importando se são micróbios, animais ou homens_ mas a felicidade não é a finalidade de todo e qualquer organismo, porém a finalidade de seres vivos que são pessoas humanas e cuja realização só pode ocorrer dentro de uma comunidade humana.
Assim como o homem tem as capacidades de falar e pensar, tem também a de ser feliz, porém um animal é inteiramente desprovido destas capacidades peculiarmente humanas. O caso particular de La Mettrie é uma excelente ilustração de um impasse de maior envergadura, uma dificuldade que costuma se apresentar para toda e qualquer concepção de caráter reducionista em que a complexidade deste composto de corpo, alma e espírito_ que é o indivíduo humano_ é reduzida a somente um dos seus aspectos.
Contudo, nem todos os filósofos iluministas abraçavam visões reducionistas e eram adeptos do ateísmo e do materialismo. Voltaire, por exemplo_ embora fosse um declarado anticlericalista e não nutrisse nenhuma simpatia pelo judaísmo nem pelo catolicismo_ era um fiel seguidor da visão teísta de Newton. Recusava-se a acreditar que o universo_ concebido como um magnífico relógio regido por leis naturais deterministas_ não tivesse por trás do seu funcionamento um Grande Relojoeiro. Contudo, a visão materialista-ateísta do século XVIII foi bastante fortalecida por cosmologias como a de Laplace (1749-1827) e encontrou seu apogeu no século XIX. No nosso tempo, a ciência continua tendo uma visão materialista, à medida mesma que não tematiza nem pressupõe nada relacionado com Deus ou com o espírito.
Trata-se de um materialismo muito mais sofisticado do que o materialismo científico do século XIX, pois já se fala até na existência de uma antimatéria. No entanto, o materialismo de caráter filosófico_ com sua pretensão de explicar o homem e fenômenos estritamente humanos tomando somente como base fenômenos físicos e bioquímicos_ já não exerce o mesmo apelo que exerceu no século passado, tanto no que se refere ao domínio acadêmico como no que se refere ao extra-acadêmico. Porém isto não significa dizer que as visões ateístas e materialistas tenham se extinguido no século XIX. Entre a segunda metade do século XIX e a segunda metade do século XX, formou-se uma mentalidade ateísta e materialista, que ainda exerce poderosa influência no nosso tempo. Como observou K. Armstrong:
No início do século XIX, o ateísmo estava definitivamente em pauta. Os avanços na ciência e na tecnologia criavam um novo espírito de autonomia, que levou alguns a declararem sua independência de Deus. Foi o século em que L.Feuerbach, K. Marx, C.Darwin, F. Nietzsche e S.Freud elaboraram filosofias e interpretações científicas da realidade, que não deixavam lugar para Deus. Na verdade, no fim do século, um número significativo de pessoas começava a sentir que, se Deus ainda não estava morto, era dever dos seres humanos racionais e emancipados matá-lo. A idéia de Deus apresentada por séculos no Ocidente cristão parecia agora desastrosamente inadequada, e a Era da Razão parecia ter triunfado sobre séculos de superstição e fanatismo. Ou não? (Armstrong, 1995, p. 347, o grifo é nosso).
À primeira vista, pensadores como F.Nietzsche (1844-1900), K. Marx (1818-1833) e S.Freud (1856-1939) não apresentam muitos traços relevantes em comum. Porém há algo mais entre estes três pensadores do que suas visões materialistas e ateístas. Nenhum deles se preocupou em refutar os argumentos tradicionais sobre a existência de Deus, como fez por exemplo E. Nagel (1966, pp.460-472) no seu artigo Uma Defesa do Ateísmo. [Este tipo de procedimento tem se mostrado bem menos freqüente no nosso tempo]. Porém todos os três apresentaram uma visão em que a religião era vista como o produto de uma falsa consciência e Deus, uma espécie de fantasia das mentes humanas cuja causa apontava para problemas psicológicos, morais ou sociais.
Desse modo, enquanto alguns pensadores isolados_ como é o caso de E. Nagel_ procuram fazer uma defesa do ateísmo mediante uma tentativa de refutação das alegações teístas, a maior parte dos ateístas do nosso tempo costuma seguir a trilha aberta por Marx, Nietzsche e Freud, ou seja: tentam mostrar que as concepções de Deus e da religião são produtos desta ou daquela forma de alienação ou de mistificação. Há ainda uma outra tendência de caráter ateísta e talvez esta seja a mais sutil das três, pois ela emergiu justamente de concepções filosóficas e teológicas, que apresentavam um verniz teísta, mas, no fundo mesmo, serviam-se apenas de um linguajar teológico para expressar uma adesão entusiástica a concepções marxistas e alguns dos seus desdobramentos no nosso século.
Falar em uma teologia ateísta pode parecer uma contradictio in adjecto, porém não se trata disto. O que está em jogo é um tipo de pensamento que se apropria de um determinado discurso, usa suas expressões características, mas se desvincula da sua finalidade precípua, porquanto não está realmente interessado em Deus, mas sim em promover uma conscientização política no sentido de uma particular visão de mundo: no caso, a visão marxista e suas ramificações contemporâneas.
“Cristo levou-me a Marx” declarou rudemente Ernesto Cardenal, o sacerdote nicaragüense, ao Papa João Paulo II, que o admoestou de dedo erguido no aeroporto de Manágua, em 1983. “Penso que o Papa não compreende o marxismo”_ disse o poeta mundialmente famoso, e Ministro da Cultura sandinista. “Para mim, qualquer dos quatro Evangelhos é comunista”. Cardenal resumiu o seu breve contra o Papa: “Sou um marxista que crê em Deus, segue Cristo e é um revolucionário para a salvação do Seu reino. Leonardo Boff, o franciscano brasileiro convocado a Roma em 1984 para defender o seu ponto de vista sobre a Igreja nos nossos dias, escreveu logo em seguida no jornal romano de esquerda Paese Sera que a compreensão que o Papa João Paulo II tem do comunismo é “uma espécie de caricatura”. (Novak, 1988, p.25).
É importante lembrar que João Paulo II é Doutor em Filosofia, um homem extremamente culto e consciente dos problemas espirituais do nosso tempo. Como polonês e tendo vivido a maior parte da sua vida na Polônia, ele viu de perto os horrores da prática bolchevista em um país satélite da ex-União Soviética, e o que é realmente “uma espécie de caricatura” é este conúbio espúrio de marxismo e cristianismo propugnado pela teologia da libertação_ fenômeno típico do subdesenvolvimento mental da América Latina. (Rangel, 1982. Mendoza, Montana & Llosa, 1996).
Isto que afirmamos ficará bastante evidente adiante, após uma breve caracterização do marxismo como ideologia hostil a Deus e à religião. E.H. Haeckel (1834-1919) _ que teve uma grande aceitação entre o final do século XIX e inícios do XX e hoje está completamente esquecido_ deve ser lembrado para exemplificar como uma visão teísta acaba expressando uma visão ateísta. Haeckel tomou o evolucionismo darwinista como ponto de partida para uma extravagante visão monista- mecanicista. Para ele, a evolução ia do átomo ao homem. Todas as formas de vida, desde os protozoários, brotavam espontaneamente para chegar aos mamíferos e ao homem. A tese freqüentemente atribuída a Darwin de que o homem é um descendente direto do macaco [não a hipótese de que ambos podem ter descendido de um antepassado comum, o elo perdido] é na realidade uma tese de Haeckel. (Hirschberger, 1978, vol.II, p.320).
No primeiro capítulo de Os Enigmas do Universo, Haeckel procura fazer uma estranha síntese da sua visão de Darwin com as idéias básicas do panteísmo de Spinoza (1632-1677): “Nós afirmamos o monismo puro e unívoco de Spinoza: a matéria como substância infinitamente extensa e o espírito (ou a energia) como substância sensitiva e pensante são os dois atributos ou propriedades fundamentais do ser divino que tudo abarca, da substância universal” (citado por Hirschberger, 1978, vol.II, p. 320).
E assim como não há distinção real entre matéria e espírito _ que são dois aspectos de uma mesma coisa_ também não há entre Deus e a natureza. Trata-se realmente de uma retomada do panteísmo spinozista. “O monismo não conhece no universo mais que uma única substância, que é ao mesmo tempo Deus e natureza. corpo e espírito, matéria e energia estão indissoluvelmente unidos nesta substância. O deus extramundano ou pessoal do dualismo conduz ao teísmo, mas o deus intramundano do monismo conduz ao panteísmo” (citado por Hirschberger, 1978, vol.II, p.320). A respeito do monismo mecanicista de Haeckel, diz Hirschberger:
Do monismo de Haeckel nada ficou. Sua teoria da descendência do macaco cedeu lugar, no domínio da ciência, a tese mais cautelosa no sentido de que ambos, homem e macaco, tinham um antepassado comum. Posteriormente, a possível descendência ficou limitada ao aspecto somático. O sentido e o grau de tal procedência é hoje algo extremamente controverso. A origem das espécies continua sendo um enigma para a ciência. Não se pode admitir como um fato comprovado pela ciência a origem espontânea e mecânica da vida a partir da matéria inorgânica e menos ainda a identidade radical do corpo e do espírito. Pode-se dizer que o materialismo como teoria científica está superado. Mas, na sua época, os escritos de Haeckel seduziram milhares de espíritos, principalmente em círculos marxistas. Na sua morte, o Vorwärts ( órgão oficial do Partido Social-Democrata Alemão) escreveu as seguintes palavras: “O que Voltaire foi para os franceses, Haeckel foi para os alemães. Ele é o símbolo da revolução alemã”. No marxismo soviético as doutrinas de Haeckel são tomadas como ciência. (Hirschberger,1978, vol. II, pp. 320-1).
No que diz respeito à visão panteísta, parece não haver dúvida de que o panteísmo de Haeckel é uma retomada bastante simplificadora do de Spinoza. No século XVIII, este filósofo tinha um papel bastante discreto na filosofia, mas, com o surgimento da mentalidade romântica, ele passou a desempenhar um papel tão importante quanto o desempenhado por J.J. Rousseau (1712-1788) tanto para Robespierre e os jacobinos ao final do século XVIII como para os principais pensadores e literatos do romantismo nos inícios do século XIX.
Isto não é de surpreender, se levarmos em consideração que Rousseau foi o grande fomentador de uma visão idílica e pueril da natureza e dos primitivos [o nobre selvagem] e Spinoza antecipou a ânsia romântica da totalidade cósmica, a união dos opostos e a identificação da natureza com Deus. Nada mais romântico do que o culto dos sentimentos de Rousseau e o panteísmo de Spinoza. Ainda hoje estas idéias exercem uma poderosa atração, principalmente sobre os espíritos mais inclinados a sonhar e a liberar a força da imaginação do que a pensar e cultivar a força da argumentação.
Por “monismo”, devemos entender a concepção de uma única substância contrastando com o dualismo [como, por exemplo, o dualismo cartesiano da res cogitans e da res extensa] e com o pluralismo [como, por exemplo, o pluralismo aristotélico concebendo uma grande diversidade de substâncias]. Temos razões para pensar que, destas três concepções filosóficas, somente a pluralista está de acordo tanto com o senso comum e com a ciência. Das outras duas, a mais problemática é o monismo, pois gera insuperáveis entraves de caráter metafísico, lógico e epistemológico. Uma visão monista não tem de ser necessariamente panteísta [identificação de Deus com a natureza], pois ela pode rejeitar a concepção de Deus [monismo materialista] ou simplesmente não se pronunciar a respeito desta mesma [monismo neutro ou agnóstico].
Uma visão monista [concepção segundo a qual há somente uma substância] não tem de ser necessariamente panteísta, mas uma panteísta tem de ser necessariamente monista. E isto significa dizer que, além dos entraves metafísicos, lógicos e epistemológicos do monismo, ela contém ainda um sério entrave de caráter teológico. Este se resume a praticamente dois aspectos: o determinismo ameaçando a concepção do livre arbítrio e a união dos opostos ameaçando a distinção real do bem e do mal. À primeira vista, causa espécie a afirmação de Hirschberger de que não só as concepções de Haeckel eram admiradas pelos defensores do marxismo soviético como também_ e isto é mais espantoso ainda _ eles a tomavam como uma teoria científica. Evidentemente, eles colocavam de lado o panteísmo e concentravam sua atenção sobre o monismo de Haeckel. Concebida unicamente por seu aspecto monista, a doutrina haeckeliana despontava como algo semelhante ao antigo hilozoísmo [concepção de que todas as coisas inanimadas têm vida] com a diferença de que não se tratava de afirmar que a natureza inorgânica possuía vida, mas sim que a vida de todos os organismos, inclusive a do homem, podia ser explicada por uma série de transformações do reino inorgânico ao orgânico.
Na sua obra A Origem da Vida, o soviético A. I. Oparin não se detém nos protozoários ou nas amebas, para explicar a formação de organismos mais complexos, procura reduzir a vida destes organismos elementares a combinações de substâncias químicas simples. Se não se trata de hilozoísmo, é certamente um monismo materialista, que difere do panteísmo de Spinoza porque o deus intramundano deste último é substituído pela matéria onipresente e suas incessantes transformações.
Na década de 20, o Partido Comunista da União Soviética considerava ser um excelente reforço da sua visão de mundo ateísta uma comprovação científica de que a origem da vida não requeria qualquer intervenção divina. Assim sendo, o bioquímico A .I. Oparin recebeu ordem do Partido para produzir uma teoria materialista da origem da vida. A teoria produzida por ele não pode ser considerada científica, de acordo com a metodologia popperiana, porque, como explicitaremos mais adiante, carecia de falsificadores potenciais.
Segundo Wächterhäuser (1997, pp.218-9), a referida teoria foi propositalmente concebida de modo a ficar imune a qualquer crítica ou falsificação. De acordo ainda com este mesmo autor, Oparin inventou um “caldo pré-biótico” cujo conteúdo ficou inteiramente vago. Posteriormente, os marxistas J.B.S. Haldane e J.D.Bernal procuraram aperfeiçoar a teoria de Oparin, mas não conseguiram erradicar nem mesmo atenuar seu caráter vago e não-testável. De acordo com A. M. Weiner (1987, pp.1098- 1130_ conhecido especialista em biologia molecular_ os pesquisadores desta área do conhecimento científico ainda não chegaram a nenhum acordo a respeito do conteúdo preciso da “sopa” de Oparin.
Entre Haeckel e Oparin está certamente F. Engels e sua fabulosa Dialética da Natureza: uma mistura de ciência e fantasia repleta de puerilidades. O cientista J. Monod (1976, p.50 e pp.187-8), Prêmio Nobel de Medicina, desferiu ásperas críticas às deturpações feitas por Engels, e o físico e filósofo da ciência F.M. Gomide seguiu o mesmo caminho quando disse explicitamente:
Engels, num procedimento teórico digno do genial Hegel, enuncia um princípio abstruso ancorado em entendimento confuso e irreal de quantidade e qualidade, que é o seguinte: A Lei da Transformação da Quantidade em Qualidade. Essa lei é “justificada” com base em três fatos: a descoberta de que a célula via multiplicação e diferenciação leva aos corpos de vegetais e animais; a lei da transformação de energia (?!); a teoria da evolução de Darwin. Com base em fatos disparatados Engels postula sua lei universal necessária.(...) Os medievais romperam com Aristóteles matematizando qualidades (...) não existem quantidades e qualidades puras. A física moderna está baseada em um formalismo matemático envolvendo qualidades matematizadas, que são as grandezas físicas. A energia, por exemplo, é uma qualidade matematizada, e, quando há transformação de um tipo de energia noutro, temos uma equação igualando os dois tipos de energia. Não tem nenhum sentido científico a transformação de quantidade em qualidade. O que Engels afirma é total estultice. (Gomide, 1996, pp.22-3, o grifo é nosso).
Não há dúvida de que a Dialética da Natureza de Engels é uma excelente leitura humorística para cientistas cansados e desejosos de lazer. Mas, de nossa parte, preferimos nos ater às motivações geradoras de doutrinas extravagantes e simplistas como as de Haeckel, Engels e Oparin. Pensamos que somente uma ânsia romântica da totalidade e da união de todos os opostos pode dar conta desses empreendimentos metafísicos marcados por uma megalomania irresponsável e envernizados com uma camada de pseudocienticidade. Enquanto perdurou a União Soviética, a visão filosófica oficial sustentava uma visão marxista-engeliana de caráter cosmológico envolvendo os mundos da natureza e da cultura e concebendo um grande e lento processo indo desde combinações de substâncias químicas simples em tempos imemoriais até o surgimento do homem e da história.
Para todos os efeitos, não havia nenhuma descontinuidade dos reinos da natureza e da cultura: os princípios básicos que regiam a dialética da natureza eram exatamente os mesmos que regiam a dialética da história, pois eram os princípios da Ciência da Lógica de Hegel: a tese, a antítese e a síntese. Tanto os mecanismos das marés como as transformações da história _ malgrado as gritantes diferenças entre ambos os fenômenos_ podiam ser explicado por estes três movimentos imbatíveis e onipresentes.
Os Enigmas do Universo de Haeckel, o Primeiro Esboço de Um Sistema de Filosofia da Natureza de Schelling e a Ciência da Lógica de Hegel são algumas das mais contundentes evidências da capacidade característica dos metafísicos alemães de construir sistemas megalomaníacos e obscurantistas. Não são coisas para se levar a sério! Schopenhauer (1995, p. XI ) tinha uma dose de razão quando chamava Fichte, Schelling e Hegel de “os três sofistas”. O desprezo deste trio tanto pela clareza como pela ciência é algo que salta aos olhos. O de Hegel em particular_ que considerava a mecânica celeste de Newton como coisa “pedestre” e necessitando de “asas para voar”_ foi bem apontado por F.M. Gomide:
Hegel explicita as essências metafísicas dos objetos em definições quilométricas e altamente artificiais. E, como os escolásticos fossilizados, vota um completo desdém pelas realizações da ciência. Ele, no século XIX, parece ignorar que Lavoisier no século XVIII sepultara os quatro elementos de Empédocles. Num testemunho de atraso, redefine os quatro elementos em definições de comprimento ofídico, pois elas lembram sucuris. Votando um total desdém por van Helmont que no século XVI descobrira que o fogo é gás incandescente, Hegel assim define o fogo: “Os elementos da oposição são primeiramente o ser por si, não já o indiferente da rigidez, mas como o posto como momento na individualidade como a inquietude que é o por si desta. Tal é o fogo. O ar em si é o fogo (e assim se revela mediante a compressão)e o fogo posto como universalidade negativa, ou negatividade que se refere a si mesma . O fogo é tempo materializado, ou o si mesmo materializado (luz idêntica com o calor); é o absolutamente inquieto e devorador, no qual se resolve a autoconsumação do corpo; como pelo contrário, chegando a esta exteriorização, o destrói, é o consumar de outro, que, sua vez, se consome a si mesmo e passa desse modo à neutralidade”. Profundo! Genial! Esta linda definição é o suficiente para se considerar Hegel um paciente de hospital psiquiátrico. (Gomide,1996, pp.19-20, o grifo é nosso).
Talvez pela ação de um senso crítico mais aguçado ou por gozar de liberdade de expressão, os marxistas “ocidentais” [assim qualificados para marcar uma distinção em relação aos separados deles pela cortina de ferro ou pela cortina de bambú] colocaram de lado quaisquer preocupações com a dialética da natureza e com a visão cosmológica monista materialista da doutrina oficial soviética, e passaram a se concentrar no aspecto cultural da visão marxista-engeliana, ou seja: se ativeram às feições do marxismo consideradas as mais relevantes pelo próprio Marx: uma teoria da formação da sociedade humana e da história. Não cabe explicitar aqui esta teoria; mas, para nossos propósitos presentes, basta dizer que a mudança de orientação assinalada acima tirou do cenário qualquer preocupação com a Biologia e concedeu toda ênfase à Economia.
De acordo com Marx, as relações de produção constituem a infra-estrutura da sociedade; elas são os alicerces sobre o qual se apoiam as demais formações sociais: formas de governo, estratificações de classes, moral tribal ou sistema jurídico, ideologias, religiões, etc. tudo isto e talvez mais alguma coisa constitui o que ele chamou de superestrutura. A idéia em jogo não é simplesmente a de que uma camada serve de sustentação para a outra, mas também a de que está em jogo uma relação de natureza causal entre ambas , de modo tal que o tipo de relação de produção econômica determina as feições da superestrutura (Carew Hunt, 1963, pp.61-80).
Embora Marx tivesse negado que se tratava de uma causalidade mecânica em que a superestrutura despontava como mero epifenômeno da infra-estrutura, pensamos que é bastante difícil evitar tal ilação. E ainda que se atenuasse a idéia de que está em jogo uma determinação e se pensasse em termos de uma influência [coisa que dificilmente poderia ser recusada por qualquer teoria da sociedade], continuaria persistindo a noção de unilateralidade, a menos que se entendesse estar em jogo uma influência mútua das duas estruturas.
Mas, neste caso, ter-se-ia de admitir uma causalidade circular em que as relações de produção influenciariam as demais formações da sociedade, à mesma medida que também seriam influenciadas por elas. Admitindo que assim fosse, não haveria nenhuma razão para se conceder qualquer primazia às relações de produção em face das demais formações sociais. Estar-se-ia diante de um conjunto de complexas interações de todas as formações sociais entre si.
Embora esta concepção nos pareça muito mais adequada ao que pode ser observado na sociedade humana e no curso da história, a idéia de uma causalidade mecânica e unilateral_ tal como sustentada por Marx_ tornou-se algo entranhado no pensamento e na cultura ocidental e costuma exercer uma forte atração não só sobre intelectuais como também sobre pessoas comuns.
Ao final do século XX, muitos dos economistas que não aceitam as idéias desenvolvidas por Marx na segunda metade do século XIX, costumam aceitar a visão economicista embutida na teoria das duas estruturas, e isto talvez possa se explicado por dois motivos: (1) Geralmente, os economistas têm uma formação de “engenheiros econômicos”. Eles dominam muito bem todo o instrumental matemático usado na análise econômica, mas possuem escassos _e às vezes mesmo pueris_ conhecimentos de ciências sociais e história. (2) Como nas outras carreiras e profissões, nota-se um forte espírito corporativista, que, entre outras coisas, fortalece a busca e a preservação de uma reserva de mercado intelectual.
Assim como os médicos _ que constituem o mais forte espírito de corpo profissional_ gostariam de reduzir a psicologia à neurofisiologia, a lingüística à neurolingüística e toda a complexidade do comportamento humano a padrões inatos no código genético, assim também os economistas em geral gostariam de reduzir toda a complexidade das relações sociais a relações econômicas quantificáveis. Caso, isto pudesse ser feito, os médicos acabariam com o mercado de trabalho dos psicólogos e dos lingüistas, e os economistas deteriam na suas mãos o monopólio das explicações nas ciências humanas e sociais. Infelizmente, para ambos, há um longo caminho entre esse forte desejo e suas efetivas condições de realização. O medicinismo é uma distorção tão detestável quanto o economicismo, tanto do ponto de vista epistemológico quanto do ponto de vista ético.
Consideremos uma afirmação tipicamente economicista, que soa como um incessante e cansativo refrão nos ouvidos de qualquer espírito dotado de senso crítico e familiarizado com a extrema complexidade e sutileza das ciências humanas e sociais: “A pobreza gera a criminalidade”. Não se trata de uma afirmação costumeiramente feita apenas por professores universitários, autores de livros técnicos e pesquisadores dentro da mencionada área. Ela é freqüentemente encontrada nas páginas dos jornais ou nos raros programas culturais da televisão.
Trata-se de uma dessas idéias enraizadas na mentalidade de uma época. Milhares de papagaios a repetem como costumam repetir chavões da moda, sem a menor reflexão a respeito do seu conteúdo e sem a menor suspeita do seu caráter altamente problemático e teoricamente temerário. Não cabe desenvolver aqui uma longa análise da referida asserção: basta fazer uma breve consideração baseada em um único exemplo desafiador.
Consideremos por exemplo dois grandes centros urbanos, cidades de mais de cinco milhões de habitantes, como é o caso de São Paulo no Brasil e de Bombaim na Índia. Supondo que o grau de pobreza por si só fosse causador do grau de criminalidade, a cidade que apresentasse o maior grau de pobreza teria de apresentar o maior grau de criminalidade. Ora, o grau de pobreza absoluta de Bombaim é muitas vezes maior do que o de São Paulo, mas o grau de criminalidade desta cidade é muitas vezes maior do que o daquela. Como se explica isto?
Pensamos poder levantar uma hipótese bem mais plausível do que a de que a pobreza por si só gera a criminalidade. Nossa hipótese é de que qualquer indivíduo vivendo em uma sociedade ocidental com determinadas peculiaridades não encontráveis em certas sociedades orientais _ como é o caso da Índia_ está muito mais propenso a transgredir a lei praticando crimes tais como o furto, o assalto à mão armada, o seqüestro, etc. A referida propensão não está relacionada com seu grau de poder aquisitivo nem com suas oportunidades no mercado de trabalho, mas sim com a visão de mundo predominante na sociedade em que ele vive e que costuma adotar.
Na Índia, a visão de mundo predominante se caracteriza pelo fatalismo: alguns indivíduos nascem para ser pobres, outros nascem para ser ricos; alguns nascem para ter uma vida extremamente feliz, outros para ter uma extremamente infeliz, dependendo do karma acumulado em um grande número de vidas passadas.
Esta visão reencarnacionista e fatalista faz com que o indivíduo aceite sua precária condição como uma forma de expiação dos males praticados por ele em outras vidas. Ele não deve se revoltar contra a sua condição humana, pois a revolta pioraria as coisas. Inevitavelmente, ele é remetido a um conformismo e a um passivismo. E assim como é levado a obedecer cegamente a “lei sobrenatural”, é também levado a obedecer do mesmo modo a lei humana: ele não a obedece em virtude de um temor das sanções legais provenientes de possíveis transgressões, mas sim em virtude de algo cuja violação, para ele, acarretaria conseqüências muito mais drásticas podendo se estender desta para outras vidas.
No mundo ocidental, a visão predominante é a de que um indivíduo humano não é totalmente impotente diante da sua condição de existência no mundo. Se ele costuma tomar decisões de alto risco, como a de assaltar um banco ou fazer um seqüestro, esta é a maior prova de que ele não aceita o comodismo e o passivismo, e ao mesmo tempo uma evidência de que ele tem a crença de que pode modificar sua condição e melhorar seu padrão de vida, ainda que tenha de recorrer a violações da lei para conseguir tal coisa.
Se ele tivesse na sua cabeça uma visão semelhante à dos indianos, não seria motivado a fazer nada para modificar sua situação, mas sua crença de que ele pode modificá-la é tão forte, que ele é levado a violar os princípios éticos da visão religiosa predominante na sua sociedade e até mesmo as leis vigentes nesta mesma. Ele pode temer as sanções da lei humana, mas não teme nenhuma sanção de caráter sobrenatural.
Assim como as guerras, os crimes são fenômenos extremamente complexos, que dificilmente se deixam explicar pela ação de uma única causa. Tudo indica a existência de uma diversidade de causas podendo atuar separada ou conjugadamente, conforme o caso. Não se podem negligenciar fatores de caráter político, econômico, social, psicológico, ético, religioso, racial, étnico etc. No entanto, o que está por trás da asserção simplista de que a pobreza gera a criminalidade é a idéia de que a infra-estrutura determina a superestrutura e que fenômenos sociais extremamente complexos _ a existência de vários tipos de crime_ podem ser explicados por uma causa econômica bastante simples: falta de dinheiro no bolso.
Mas, se é assim, que dizer dos crimes milionários praticados por refinados estelionatários, dos praticados por médicos e dos crimes de colarinho branco em geral?! Será que estes crimes praticados por não-pobres são menos nocivos para a sociedade do que os usualmente praticados pelos reconhecidamente pobres? Segue-se que a asserção de que a pobreza gera criminalidade não só revela um aterrador simplismo como também um repelente preconceito em relação aos membros das classes carentes de poder aquisitivo.
Contudo, insistimos em afirmar que se trata de uma asserção derivada de teses marxistas gerais, tais como a de que a infra-estrutura determina a superestrutura e de que a história nada mais é do que a história das lutas de classes. A partir daí, tudo tem de ser explicado em termos de relações econômicas e conflitos de interesses econômicos. Um fenômeno complexo, como o grau de criminalidade de uma cidade ou de um país_ tal como abordado de um ponto de vista marxista_ não pode ter na sua explicação nenhum componente relativo a uma determinada mentalidade ou atitude religiosa.
No entanto, como é sabido, M. Weber (1994) apresentou uma argumentação muito bem elaborada destinada a mostrar como a ética protestante_ particularmente a calvinista _ influenciou consideravelmente o surgimento do sistema capitalista. Sublinhamos a palavra “influenciou”, pois Weber não pretendia virar Marx de cabeça para baixo, defendendo a tese de que a superestrutura determina a infra-estrutura. Para ele, as relações econômicas não só influenciavam como também recebiam influências de outras formas de relações sociais. Para todos os efeitos, nenhuma relação determinava outra: todas se influenciavam dentro de um complexo processo de interações.
No que diz respeito à religião, Marx assumiu um decidido ponto de vista unilateral em uma passagem que caracteriza muito bem seu pensamento: “A religião é o suspiro de um ser repleto de preocupações, o coração de um mundo sem coração, o espírito de condições de vida de que ela está desprovida. Ela é o ópio do povo. A abolição da religião_ felicidade ilusória do povo_ é uma pré-condição para a realização da sua felicidade”. ( Marx, citado por Osborne, 1965, p.84, o grifo é nosso).
Diante de passagens como esta, somente um desavergonhado sofista tentará construir uma visão de mundo integrando o marxismo_ uma visão materialista e ateísta francamente hostil a qualquer crença religiosa_ ao cristianismo, o judaísmo ou o islamismo. Se a abolição da religião é uma pré-condição para a conquista da felicidade, segue-se inapelavelmente que a religião é um poderoso obstáculo para a consecução do referido fim. Para Marx, ninguém pode cultuar a Deus e ser realmente feliz. Trata-se de uma felicidade ilusória.
Mas se é assim, como se pode levar a sério a assim chamada “teologia da libertação”? Temos todo o direito de desconfiar que se trata de mera apropriação do discurso teológico para fins puramente politizantes, mais especificamente para estimular o despontar da revolução socialista no meio agrário [de acordo com a concepção maoista-sandinista de que o camponês é o verdadeiro revolucionário em potencial]. Pensamos que os simpatizantes de qualquer aproximação do cristianismo com o marxismo deveriam prestar séria atenção ao que dizia o teólogo P. Tillich nos inícios da década de 50:
A grande tragédia do nosso tempo é o fato de que o marxismo, concebido como um movimento para a libertação de todos, foi transformado em um sistema de escravização de todos, mesmo daqueles que escravizavam os outros. É difícil imaginar a intensidade desta tragédia em termos de destruição psicológica, especialmente dentro da intelligentsia. A coragem de ser foi solapada em inumeráveis pessoas porque era coragem de ser no sentido dos movimentos revolucionários do século XIX. Quando eles entraram em colapso, estas pessoas voltaram-se, quer para o sistema neocoletivista, numa reação fanático-neurótica contra a causa do seu trágico desapontamento, quer para uma indiferença cínico-neurótica ante todos os sistemas e todo conteúdo. (Tillich, 1992, p.119).
Logo a seguir, Tillich estendeu às conseqüências das idéias de Nietzsche observações semelhantes às feitas às idéias de Marx, antecipando, assim, a crítica que pretendemos desenvolver mais adiante ao apologista da vontade de potência.
É óbvio que observações similares podem ser feitas à transformação do tipo nietzscheano de coragem de ser como si próprio, nas formas nazifascistas de neocoletivismo. As máquinas totalitárias que estes movimentos produziram abarcavam quase tudo contra o que a coragem como si próprio se coloca. Usaram todos os meios possíveis afim de tornar tal coragem impossível. Contudo, diferentemente do comunismo, este sistema fracassou [obs.Tillich está escrevendo em 1952!], sua conseqüência é confusão, indiferença, cinismo. E é este o solo sobre o qual o desejo ardente de autoridade e de um novo coletivismo cresce. (Tillich, 1992, p.119).
Marx fez uma abordagem tipicamente historicista da religião. Para caracterizar sua natureza, partiu em busca das suas origens na noite dos tempos. Dada a escassez de dados arqueológicos e antropológicos relevantes para falar sobre tal coisa, o máximo que se pode fazer é aventar uma hipótese, mas Marx nunca se expressou como se estivesse fazendo conjecturas, mas sim como se estivesse descrevendo e analisando fatos. Como muitos antes dele haviam proposto, ele considerava que a religião tinha surgido em virtude do medo e da impotência humana diante das poderosas forças da natureza.
Não há dúvida de que se trata de uma hipótese plausível; mas, para que ela não se torne unilateral, é preciso acrescentar que não é somente o pavor que está em questão, mas também o maravilhamento e o espanto diante de grandiosos espetáculos, como o proporcionado por uma violenta tempestade com seus terríveis relâmpagos. Na realidade, quando tentamos reconstituir hipoteticamente o que poderia ter sido esta experiência humana nos primórdios da humanidade, somos remetidos a um conjunto de sentimentos ambíguos: atração e repelência, maravilhamento e terror, sensação de impotência e elevação estética promovida pela apreensão do sublime, etc. Parece que estes mesmos sentimentos são sempre reavivados e revividos toda vez que um ser humano se depara com o mistério profundo, com o inteiramente desconhecido.
No seu livro Das Heilige [O Sagrado] Rudolf Otto esforça-se por clarificar os caracteres específicos desta experiência terrífica e irracional. Encontra o sentimento de pavor diante do sagrado,diante deste mysterium tremendum, diante desta majestas que exala uma superioridade esmagadora de poder; encontra o temor religioso diante do mysterium fascinans, onde se expande a perfeita plenitude do ser. R. Otto designa todas estas experiências como numinosas [do latim numen, “deus”], porque elas são provocadas pela revelação de um aspecto do poder divino.(...)em relação ao ganz Ander [inteiramente outro], o tem o sentimento de sua profunda nulidade, o sentimento de “não ser mais do que uma criatura”, quer dizer, segundo os termos que Abraão se dirigiu ao Senhor, de não ser “senão cinza e pó” [Gênese, 18, 27]. (Eliade, 1968, p.19).
Para Marx, o homem primitivo_ sentindo-se ameaçado pelas forças naturais _ procurou conjurá-las mediante sacrifícios de animais, ou mesmo de seres humanos, e de presentes aos deuses. As características, no entanto, da religião foram se modificando, conforme o homem foi adquirindo um domínio maior da natureza, graças aos instrumentos construídos por ele e a um grau maior de coesão social. Desse modo, o medo e a impotência, que ele antes experimentara diante das forças naturais, foi transferido para o domínio das forças econômicas e sociais, que escapavam ao seu controle. (Osborne, 1965, p.81).
F. Engels entendia que toda religião nada mais era do que o reflexo fantástico, no cérebro do homem, das potências superiores que dominam sua existência cotidiana_ reflexo no qual as potências terrestres assumem a forma de potências supraterrestres. Em um momento posterior da história, juntamente com as potências naturais, entraram em ação as potências sociais. Apesar destas mesmas se desenvolveram diante dos narizes dos homens, não se mostraram imediatamente inteligíveis e os dominaram com a mesma aparência de necessidade natural antes apresentada pelas forças naturais. As personagens fantásticas nas quais só se refletiam, no começo dos tempos, as misteriosas forças da natureza, passaram a receber atributos sociais, tornaram-se representações distorcidas de potências históricas.
Diante deste quadro pintado por ele, Engels concluiu: “Já vimos em diferentes momentos que, na sociedade burguesa atual, os homens são dominados por relações econômicas criadas por eles mesmos, pelos meios de produção produzidos por eles mesmos, mas como se o fossem por uma potência estranha. A base efetiva da ação reflexa religiosa subsiste portanto e, juntamente com ela, o próprio reflexo religioso “. (Engels, 1956, pp.355-6).
Dito de outro modo: para Engels, o fenômeno da alienação_ tal como ele supostamente se verificava na sociedade capitalista do seu tempo_ na mais fraca das hipóteses continha um resquício arcaico do assim chamado “reflexo religioso” e, na mais forte, tinha sua mais remota origem no medo e na impotência do homem primitivo diante das forças da natureza. Não é de surpreender, portanto, que Marx considerasse a religião como ópio do povo, como uma felicidade ilusória constituindo um poderoso entrave para a conquista da verdadeira felicidade.
Como é sabido, a verdadeira felicidade_ para Marx e Engels_ só poderia se configurar plenamente na sociedade comunista pós-socialista, em que não haveria mais Estado nem uma sociedade dividida em classes sociais. Mas o que é isto? O Paraíso bíblico em uma versão laica?
Se a religião é mesmo o ópio do povo, Marx era um viciado irrecuperável e não sabia. Comparemos estas duas versões da história da humanidade resumida em três grandes etapas:
____________ versão hebraico-cristã __________
| 1 2 3 |
Adão e Eva no Paraíso... Paraíso Perdido e Exílio.... Paraíso Reconquistado
_____________ versão de Marx e Engels ________
| 1 2 3 |
sociedade comunista........ sociedades de classes....... sociedade comunista
primitiva [escravismo, feudalismo, pós-socialista
[sem Estado e sem capitalismo, socialismo] [sem Estado e sem
classes sociais] classes sociais]
Como vemos, em ambas as versões estamos diante de processos circulares em que o princípio se encontra com o fim. Isto não quer dizer que o princípio seja o mesmo que o fim, pois, para usar a lógica dialética_ em uma das poucas instâncias em que ela parece poder ser aplicada_ temos uma tese, uma antítese e uma síntese em que se dá uma verdadeira Aufhebung hegeliana, ou seja: a síntese conserva e supera a tese.
O pensamento messiânico-laico de Marx, quando se volta para a idealização de uma sociedade utópica, não consegue se desvencilhar do modelo hebraico-cristão vigente na sua sociedade Se fôssemos freudianos, diríamos que este modelo estava enraizado no seu inconsciente; mas, como não somos, limitamo-nos a sugerir que ele o assimilou de modo acrítico da sua sociedade e do seu meio familiar.
Há crenças que incorporamos passivamente ao nosso repertório de informações e à nossa visão de mundo e jamais chegamos a nos dar conta desse processo e da maneira como tais crenças influenciam nosso pensamento e nossa conduta; porém isto não pressupõe nenhuma ação do “inconsciente” freudiano_ um conceito demasiadamente vago e obscuro [MacIntyre (1958), Wittgenstein (1966), Hampshire (1969)]. M. D’Arcy (1968, p.53) resumiu esta situação insólita dizendo que “o comunismo é inimigo ressentido da religião, e no entanto contém alguns elementos de caráter religioso capazes de estimular o fervor e até o fanatismo”. Grande conhecedor de mitos e religiões, M. Eliade sustentou um ponto de vista bastante próximo do sustentado acima por nós:
Qualquer que seja a opinião sobre as veleidades científicas de Marx, é evidente que o autor do Manifesto Comunista retoma e prolonga um dos mitos escatológicos do mundo asiático-mediterrâneo, a saber: o papel redentor do Justo ( “o eleito”, “o ungido”, “o inocente” e nos nossos dias: “o proletariado”) cujos sofrimentos têm sido chamados para reformar o estatuto ontológico do mundo. Com efeito, a sociedade sem classes de Marx e a conseqüente desaparição das tensões históricas encontram seu melhor precedente no mito da Idade do Ouro, que _segundo diversas tradições_ caracteriza o começo e o fim da história. (Eliade, 1973, p.22, o grifo é nosso).
Eliade prossegue ainda dizendo que Marx enriqueceu esse vetusto mito com toda uma ideologia messiânica hebraico-cristã. De um lado, ele outorgou ao proletariado um papel profético e uma função soteriológica e de outro estabeleceu um antagonismo entre este e a burguesia como uma luta entre o Bem e o Mal, o conflito entre Cristo e o Anticristo com a vitória do primeiro sobre o segundo. Esta vitória, por sua vez, representa o fim absoluto da história.
Eliade lembra que filósofos da história como B. Croce e Ortega y Gasset _ que não projetaram no processo histórico nenhum messianismo como o marxista_ entendiam que as tensões são consubstanciais à natureza humana e, por isto mesmo, não poderão jamais ser abolidas (Eliade, 1973, p.22 ) [Ele retomou esta mesma questão em outra obra (Eliade, 1969, p.148)].
Por outro lado, é realmente espantoso que um dos mais competentes defensores de Marx nos últimos anos nos brinde com uma pérola como esta: “Onde mais se fazem sentir os efeitos do primeiro tipo de inclinação é nas suas opiniões sobre a sociedade comunista, se o comunismo era realmente possível como ele o concebia e se chegaria a ocorrer na história. Parece que ele [Marx] se apoiou em duas suposições implícitas: Primeira: o que é desejável é factível. Segunda: o que é desejável e factível é inevitável.” (Elster, 1986, p.2, o grifo é nosso). Segundo pensamos, estas duas suposições são características daquilo que foi muito bem denominado de wishful thinking (pensamento desiderativo) típico de visionários enredados em seus projetos inexeqüíveis.
No entanto, apesar de reconhecer que “muitas das mais apreciadas doutrinas de Marx foram demolidas totalmente mediante argumentação; outras foram refutadas pela história, que nos mostrou que a conseqüência lógica da sua filosofia política é uma sociedade abominável” (Elster, 1986, p. 4), o referido autor_ cuja competência intelectual é insuspeita_ ainda tem a esperança de extrair algum suco dessa laranja seca e endogenamente perversa: o marxismo. Mas “o que tem tudo isso a ver com a política e a economia no mundo real? Absolutamente nada. Do mesmo modo que a filosofia marxista se assenta em uma visão poética, a elaboração dessa filosofia foi um exercício de retórica acadêmica. Entretanto, o que Marx precisava para pôr em movimento sua maquinaria intelectual era de um estímulo moral. Ele o encontrou em seu ódio à usura e aos agiotas, um sentimento violento relacionado diretamente (como veremos) com suas próprias dificuldades financeiras”. (Johnson,1988, p.69).
Como pretendemos mostrar, tanto Freud como Nietzsche passaram por um processo semelhante em que fortes traços religiosos podem ser facilmente surpreendidos nas suas visões pretensamente anti-religiosas. Isto não constitui nenhum mérito, mas sim uma falha na sua capacidade de autocrítica. Temos aqui algo análogo à “religião positiva” de A. Comte em que a estátua da Virgem Maria amamentando o menino Jesus foi simplesmente substituída pela da Humanidade amamentando seus filhos. A forma pode ser ateísta ou agnóstica, mas o conteúdo é notadamente religioso. [“Velhos vinhos em odres novos”].De acordo com uma variação da concepção sustentada por Marx, alguns marxistas entenderam que a religião não passava de uma fantasia perversa cuja origem remetia a antigas sociedades teocráticas: uma invenção da classe sacerdotal destinada à legitimação do poder político e à promoção de um temor reverencial nos membros do povo. Neste sentido, não haveria muita diferença entre a religião oficial do Império Romano e a instituição oficial do grande circo, pois ambos procuravam manter a obediência ao status quo e fornecer uma espécie de válvula de escape para as tensões sociais. O “ópio do povo” não está muito longe do panes et circenses [pão e circo].
Podemos até discutir a hipótese de que Deus e as religiões não passam de uma fantasia humana gerada basicamente pelo medo da morte e do desconhecido. Mas a tese de que são fantasias geradas conscientemente por uma classe sacerdotal ou qualquer outra nos parece algo definitivamente inaceitável. Aceitá-la implicaria conceber os sacerdotes de sociedades teocráticas como déspotas esclarecidos do século XVIII, uma vez que teriam procurado inocular no povo uma crença na qual eles mesmos não acreditavam. Ora, isto seria atribuir a eles um grau de consciência dificilmente possuído por eles na sua condição histórica.
Parece bem mais plausível admitir que eles acalentavam firmemente a crença que teriam procurado incutir nos outros, e que_ se esta mesma crença era uma ilusão_ eles estavam tão iludidos quanto os que passaram a incorporá-la. [O mesmo não se pode dizer das condições históricas do nosso tempo em que pululam falsas religiões lideradas por verdadeiros “lobos em peles de ovelhas”, procurando fazer com que os outros acreditem naquilo que eles mesmos não acreditam, seja para a obtenção de prestígio ou dinheiro, ou até mesmo de ambos].
A tese mencionada no início do capítulo anterior foi de fato defendida por L.Feuerbach (1804-1872), um crítico de Hegel que exerceu forte influência sobre o pensamento de Marx, principalmente no que diz respeito à religião. De acordo com Feuerbach, a religião é “um sonho da mente humana ou uma compreensível, porém distorcida, projeção das nossas necessidades afetivas”. “Cristo é o amor da humanidade por ele mesma corporificado em uma imagem” (citado por Blackburn, 1996, p.138).
Ora, não se pode negar que algumas pessoas encontrem na religião e na crença em Deus uma forma de preencher suas carências afetivas, mas é difícil sustentar a generalização de que todas as pessoas religiosas façam isto, e não se deve negligenciar que a religião não é o único canal disponível para a efetuação do referido preenchimento.
Algumas pessoas procuram preencher suas carências afetivas recorrendo a excessos sexuais, bebidas ou tóxicos, ao passo que outras recorrem ao trabalho excessivo [os assim chamados workoholics] ou ao divã do psicanalista como alternativa para o antigo confessionário. Se as carências afetivas conduzissem necessariamente à religião, as pessoas que se sentissem carentes não procurariam outros modos de preenchimento[Mas é um fato indiscutível que elas procuram]. Se a religião só fosse procurada por pessoas carentes, não se poderia compreender que pessoas gozando de uma vida afetiva plenamente satisfatória encontrassem algo mais na religião [algo que, para estas mesmas pessoas, só ela pode oferecer: o encontro com a divindade].
Mas ao que parece o grosseiro materialismo de Feuerbach não o permitia vislumbrar estas alternativas. Como se sabe, ele foi o criador do lema: “O homem é aquilo que ele come”. Caso se tratasse do lema de um dietista preocupado com nossa saúde alimentar_ que estivesse chamando a atenção para a importância da nossa dieta sobre a nossa constituição orgânica_ teríamos de concordar com ele.
Porém não era evidentemente isto que pretendia com sua grosseira afirmação materialista, mas sim que as condições materiais da humanidade determinavam suas condições espirituais. Estava aberto, portanto, o caminho para o materialismo dialético e para o materialismo histórico de Marx e Engels, ambos baseados na determinação da superestrutura pela infra-estrutura, bem como para uma visão da religião como um tipo de falsa consciência. Além de uma visão materialista e ateísta, o que há de comum em Marx, Freud e Nietzsche é a idéia de que o superior pode ser explicado pelo inferior e que uma diversidade extremamente complexa de efeitos observáveis pode ser reduzida a uma só causa nem sempre observável.
Desse modo, para Marx toda a complexidade da vida social podia ser explicada pelas relações de produção. Para Freud, toda a complexidade da vida afetiva e até mesmo da vida cultural podia ser explicada pela sublimação ou pelo recalque da energia libidinal. E finalmente, para Nietzsche, pela vontade de poder (Guerreiro, 1997 b, pp. 231-242). É realmente algo pasmoso verificar que estes três pensadores do século XIX tivessem adotado um procedimento explicativo inteiramente anacrônico à luz da ciência da sua própria época e que remetia aos filósofos pré-socráticos, pois a tentativa de explicar tudo a partir de uma única causa caracterizava justamente a busca de Tales, Anaximandro, Anaxímenes, Empédocles, Heráclito, entre outros, por uma arché [um princípio ou um fundamento de tudo]. Para Tales, a arché era a água; para Heráclito, o fogo; para Anaxímenes, o ar; finalmente, para Empédocles, a conjunção dos quatro elementos: a água, o ar, a terra e o fogo. (Kirk & Raven, 1966).
Desse modo, assim como Marx falava em uma infra-estrutura e uma superestrutura, Freud falava em um ego espremido entre o infra-ego (o Id) e o superego. Estas referências a camadas ou estratos inferiores e superiores estavam longe de ser mera coincidência, uma vez que ambos, Freud e Marx, abraçavam uma teoria causal simplista em que os fenômenos encontráveis nas suas respectivas camadas superiores não passavam mesmo de epifenômenos inteiramente redutíveis e explicáveis pelos fenômenos que se apresentavam nas suas respectivas camadas inferiores, seja a da sociedade humana, seja a do psiquismo humano (Roche, 1973, pp.179-190.Winch, 1958). Desse modo, todas as atividades superiores do espírito_ ciência, filosofia, arte, religião_ para Marx podiam ser explicadas pelas relações de produção e pelas lutas de classes e para Freud podiam ser explicadas por sublimações de pulsões provenientes do infra-ego e do misterioso Unbewusst [literalmente: “desconhecido”, mas usualmente traduzido por “inconsciente”].
Nem Moisés nem Leonardo da Vinci foram poupados da fúria explicativa freudiana, que após ter elaborado uma teoria metafísica do psiquismo [baseada em boa parte em filósofos românticos como von Carus e von Hartman, que já haviam falado no misterioso Unbewusst ] a estendeu a uma teoria da cultura humana em obras como A Civilização e seus Descontentes e O Futuro de Uma Ilusão. E se a primeira teoria já era algo problemático, a segunda tornou-se ainda mais. Por exemplo: como explicar uma revolução científica ou política, a não ser recorrendo a uma revolta contra a autoridade paterna?! Isto é algo que nenhum historiador da ciência e nenhum cientista político sérios poderiam aceitar. Trata-se de um psicologismo tão inaceitável como o economicismo da teoria marxista.
Não é preciso muita imaginação para saber como Freud encarava Deus e a religião. Só podiam ser fantasias resultantes de alguma forma de sublimação das pulsões libidinais. Deus não passaria de uma projeção da figura paterna inevitavelmente relacionada com o complexo de Édipo, uma vez que todo homem era necessariamente portador deste mesmo. Refletindo sobre os mitos cosmogônicos_ em que incluía certamente o relato bíblico da criação do mundo_ disse Freud:
É interessante notar que, mesmo quando se impunha a crença em diversos deuses, a criação do universo é sempre atribuída a um deus único e este deus criador é quase sempre um homem, ainda que não estejam faltando alusões a divindades femininas. Na realidade, muitas mitologias concebem a criação do mundo como o triunfo de um deus sobre uma divindade feminina, que é prontamente rebaixada à condição de um monstro... O prosseguimento da nossa pesquisa é facilitado pelo fato de que este deus criador é abertamente chamado Pai. A psicanálise conclui que se trata realmente do pai todo-poderoso que aparecia antigamente à criança. O crente configura a criação do universo de acordo com a imagem do seu nascimento.(Freud, citado por Osborne, 1965, p.83).
A imagem paterna a que se referiu Freud estava estreitamente ligada ao complexo de Édipo. Quanto a este, trata-se de algo enraizado na natureza humana, uma versão laica do pecado original, uma vez que todos nós nascemos com esse estigma e nada podemos fazer para evitar seus efeitos sobre nossa formação enquanto seres humanos [Todos nós queríamos, na nossa infância, matar nosso pai e cometer um incesto com nossa mãe, ainda que jamais tivéssemos suspeitado disto].
Trata-se, portanto, de um fatalismo digno de tragédia grega, e não é de surpreender que Freud tivesse elaborado seu complexo de Édipo a partir do tema mitológico de Édipo encontrável nas tragédias de Sófocles: O Rei Édipo e Édipo em Colona. Em uma conferência feita em Viena antes de março de 1938, Freud mostrou seu repúdio aos totalitarismos de esquerda e de direita que ameaçavam gravemente a democracia e a liberdade individual [apesar de nunca ter esclarecido como ficava a liberdade do indivíduo estigmatizado pelo complexo de Édipo]. Neste contexto, ele fez uma interessante referência à concepção marxista da religião como ópio do povo:
Estamos vivendo num período especialmente marcante. Descobrimos, para nosso espanto, que o progresso aliou-se à barbárie. Na Rússia Soviética, dispuseram-se a melhorar as condições de vida de algumas centenas de milhões de pessoas que eram mantidas firmemente em sujeição. Foram suficientemente precipitados para retirar-lhes o “ópio” da religião e avisados o bastante para conceder-lhes uma razoável quantidade de liberdade sexual; ao mesmo tempo, porém, submeteram-nas à mais cruel coerção e despojaram-nas de qualquer possibilidade de pensamento. Com violência semelhante, o povo italiano está sendo treinado na organização e no sentido do dever. Sentimos como um alívio de uma apreensão opressiva quando, no caso do povo alemão, que uma recaída numa barbárie quase pré-histórica pode ocorrer também sem estar ligada a quaisquer idéias progressistas. De qualquer modo, as coisas revelaram-se tais, que, atualmente, as democracias conservadoras se tornaram as guardiães do progresso cultural. (Freud, 1975, pp.71-2, o grifo é nosso).
De fato, como mostrou sobejamente K. Popper em A Sociedade Aberta e Seus Inimigos (1957), não havia nada de progressista no hegelianismo de direita nem no de esquerda. Após um longo período em que seus adeptos se engalfinharam em intermináveis polêmicas ao longo da segunda metade do século XIX, acabaram tentando resolver suas diferenças pelas armas no século XX, mais precisamente no confronto de Hitler e Stalin na batalha de Stalingrado. [E esta é uma das muitas evidências de que idéias têm sempre conseqüências, embora estas nem sempre sejam boas].
Todavia, no que diz respeito ao “ópio” parece que, para Freud, este podia ser perfeitamente substituído pela “cocaína”. Como a religião não passava de mera válvula de escape, sua supressão exigia a aplicação de outra: no caso, a aludida desrepressão sexual supostamente posta em prática na Ex-União Soviética_ coisa que era alardeada na época, mas que não passava de mais um dos mitos soviéticos, que se desfizeram no ar quando a “caixa preta” foi aberta. Os líderes soviéticos não se cansavam de acusar os governos dos países não-comunistas de manipular dados oficiais com vistas a finalidades políticas, mas, com a abertura da “caixa preta”, verificou-se que eles é que faziam aquilo que imputavam aos outros. Onde só há uma fonte oficial de informação a manipulação é inevitável, e esta é uma das razões pelas quais os regimes democráticos têm de defender, com todas as forças, a liberdade de expressão e de manifestação de opinião.
Não há dúvida de que os trágicos gregos tinham uma visão fatalista da vida humana, mas a tragédia não pretendia ser ciência nem filosofia, porém um modo de expressão artística. Nenhum trágico grego se propunha a discutir racionalmente a visão do inexorável destino agindo nas suas tramas: simplesmente a adotava de modo acrítico. Contudo, quando essa visão fatalista passou do palco do teatro para o de uma séria discussão filosófica, não conseguiu resistir às contundentes objeções a ela endereçadas. Já apresentamos uma refutação de qualquer tipo de determinismo, seja no domínio natural [determinismo físico ou biológico] seja no domínio cultural [determinismo econômico, social ou histórico] (Guerreiro, 1997c). Limitamo-nos aqui a citar uma objeção eivada de fina ironia feita por um grande lógico e filósofo polonês:
Se tudo o que há de ocorrer e chegar a ser verdadeiro em um tempo futuro já é verdadeiro hoje e tem sido verdadeiro desde a eternidade, o futuro está tão determinado quanto o passado e só se diferencia deste porque ainda não ocorreu. O determinista contempla os eventos que têm lugar no mundo como se fosse um drama em um filme produzido por um estúdio cinematográfico do universo. Nós nos encontramos em pleno desenrolar deste filme e não conhecemos o final, ainda que cada um de nós não seja apenas um espectador, mas também um ator do referido drama. O final está lá, existe desde o começo da realização, porque a imagem inteira está completa desde a eternidade. Nela, todas as nossas qualidades, todas as aventuras e vicissitudes da nossa vida, todas as nossas decisões e ações_ tanto as boas como as más_ estão pré-fixadas. Somos títeres no drama do universo. Nada nos resta senão contemplar o espetáculo e esperar pacientemente o seu final.(Lukasiewicz, 1970, p.46, o grifo é nosso).
Supondo que realmente fôssemos fantoches presos por invisíveis fios conduzidos pela mão do inexorável destino [como querem deterministas, fatalistas e predistinacionistas], nada nos restaria fazer senão cruzar os braços e aguardar nossa sorte [ou azar] ou então praticar as piores perversidades e os mais abomináveis crimes, sob a alegação de que nada poderíamos fazer para conter nossa incontrolável natureza comandada por poderosas forças do inconsciente ou misteriosos decretos da cega necessidade.
Se o determinismo fosse verdadeiro, não poderíamos ser considerados responsáveis pelos nossos atos (Schlick,1962, pp.143-156): seríamos todos moralmente inocentes e juridicamente inimputáveis. Não poderíamos ser considerados algozes de ninguém, porém pobres vítimas de algo que agiria em nós e que não poderíamos fazer nada para impedir sua ação. Tentemos imaginar o que aconteceria se isto fosse realmente levado a sério. Não teríamos mais ética nem lei. Voltaríamos à barbárie.
Dentro do mesmo espírito do argumento de Lukasiewicz contra o determinismo, J. Hospers construiu um argumento especificamente contra a visão determinista implícita na psicanálise de Freud _ esta visão “moderna”, que é mistura do fatalismo da tragédia grega e do antigo confessionário. Nas suas duas primeiras premissas, ele assumiu a reducionista idéia freudiana de que o comportamento adulto dos seres humanos pode ser explicado por traumas e recalques formados na mais tenra infância, e procurou levar esta admissão às suas mais radicais e desastrosas conseqüências.
(1) Uma ocorrência sobre a qual não temos controle é algo pelo qual não podemos ser responsabilizados.
(2) Eventos E, que ocorreram na nossa tenra infância, eram eventos sobre os quais não tínhamos nenhum controle.
(3) Portanto, eventos E foram eventos pelos quais não podemos ser responsabilizados.
(4) Se há algo pelo qual não podemos ser responsabilizados, também não podemos ser responsabilizados pelo que dele inevitavelmente resulta.
(5) Eventos E têm como conseqüência inevitável a neurose N, que por sua vez tem como conseqüência inevitável o comportamento C.
(6) Uma vez que N é uma conseqüência inevitável de E, e C é uma inevitável conseqüência de N, C é uma inevitável conseqüência de E.
(7) Segue-se portanto que, não sendo responsáveis por N, tampouco podemos ser responsáveis por C . (Hospers, 1966, pp.83-4).
Não bastasse este argumento muito bem construído, Hospers citou uma penetrante passagem da conhecida sátira de S. Butler: Erewhon [um anagrama de “Nowhere”, que por sua vez é a tradução literal do grego utopia (lugar nenhum)]:
É muito cômodo você dizer que você teve pais mentalmente doentes, e teve um grave acidente na sua infância, que causou um dano permanente à sua constituição física e mental. Desculpas desta natureza são um refúgio comum de criminosos, mas não podem nem por um momento ser ouvidas pelo ouvido da justiça. Não estou disposto aqui a entrar em curiosas questões metafísicas concernentes à origem disto ou daquilo_ questões para as quais não haveria fim, uma vez tolerada sua introdução, e que resultam em remeter a única culpa aos tecidos da célula primordial ou aos gases elementares. Não está em questão o modo como você se tornou mau, perverso, porém isto: Você é mau perverso, (wicked) ou não? Caso isto seja decidido afirmativamente, não posso nem por um momento hesitar em dizer que isto foi decidido de modo justo. Você é uma pessoa má e perigosa e está marcado, aos olhos dos seus compatriotas, com uma das mais ultrajantes ofensas conhecidas. (Butler, 1963, p.107, o grifo é nosso).
R. Allers_ autor de uma crítica devastadora da psicanálise de Freud_ diz que, para Freud, a religião é uma ilusão, uma espécie de neurose dos grupos. Assim, para o bem da humanidade, ela devia ser abolida e substituída pelo reino da ciência. (Allers, 1946, p.256). A referida substituição era uma idéia bastante disseminada ao final do século XIX. Embora o pensamento de A. Comte estivesse bastante distanciado do de Freud, parece que o de Freud se aproximava do positivismo comtiano, ao menos no que diz respeito ao mencionado tópico, com a possível diferença de que, para Comte, tratava-se de um fato consumado, uma vez que a história da humanidade já havia chegado ao seu último estágio_ o estágio positivo_ ao passo que, para Freud, se tratava antes de uma expectativa bastante desejada do que do reconhecimento de um fato consumado.
No que diz respeito particularmente às idéias de Freud sobre Deus e a religião, a crítica de Allers é bastante áspera: (...) “ele não conhece absolutamente nada das enormes diferenças entre o monoteísmo judaico-cristão e a idéia pagã de um deus supremo. A sua concepção do monoteísmo dos judeus, devido à sua aceitação da religião de Athon_ a divindade do sol do Egito_ mostra que ele não conhece a essência do verdadeiro monoteísmo, e também que não procura informar-se sobre coisas que ele mesmo era incapaz de conhecer devidamente”. (Allers, 1946, p.257).
Na realidade, quando Allers disse que Freud não procurava se informar, ele queria dizer que não procurava se informar bem. Seus escritos mostram profunda erudição e apresentam um grande número de informações colhidas da mitologia, da literatura, antropologia, etc. Ocorre que_ como tenta mostrar Allers _ nem sempre Freud se apoiava em autores reconhecidamente sérios, de um ponto de vista acadêmico e científico. Como observou o próprio Allers em uma nota de pé de página: “Assim, (Freud) presta grande crédito a um livro no qual se aventa a hipótese de Moisés ter sido assassinado pelos judeus. Este trabalho foi rejeitado por autoridades no assunto, mas isto não impediu que Freud se apoiasse sobre ele para os seus raciocínios” (Allers, 1946, p.257, nota). Antes de constituir uma blasfêmia, a referida hipótese é inteiramente descabida, e os raciocínios feitos a partir dela não poderiam ser de diferente natureza.
Embora tanto Freud como Marx fossem deterministas, não lhes convinha extrair desagradáveis conseqüências como as extraídas acima. Mas não vemos como não extraí-las. Assim como as noções de “dentro” e“ fora”, “governantes” e“ governados ”, as de “liberdade” e responsabilidade” são conceitos correlacionais [ou seja: um não pode ser concebido sem o outro]. Desse modo, se não somos livres para escolher nossas ações, não podemos assumir a autoria de nenhuma delas. E é por isto que, no direito, a caracterização da inexigibilidade de conduta alternativa isenta um agente humano de culpa, como é o caso do argumento da legítima defesa. Popper, para quem Marx adotava um determinismo historicista, imaginou-o tecendo o seguinte raciocínio:
“Vejo que a burguesia está destinada a desaparecer e que surgirá o proletariado com uma nova moral. Considero que esta evolução é inevitável. É uma tolice resistir a isto, assim como é uma tolice se colocar contra a lei da gravidade. E é por isto que minha opção fundamental é a favor do proletariado e sua moral. E esta decisão se funda em uma previsão científica, uma profecia científica e histórica”. (Popper, 1957, vol. II, pp.191-2).
De acordo ainda com Popper, o historicismo determinista de Marx levou-o a adotar uma espécie de “futurismo moral”. Além de conceber o indivíduo humano como um ser passivo diante das “inexoráveis leis” da dialética, esta concepção tinha ainda um outro grave defeito: reduzia toda a complexidade da questão moral a uma questão de moral de classes sociais. Porém isto é uma decorrência dos postulados assumidos por Marx. Assim como o direito, a moral vigente, não passa de uma imposição da classe dominante (Friedrich, 1965, pp.161-170).
Na realidade, há uma contradição inerente ao pensamento marxista podendo ser sucintamente caracterizada assim: de um lado, o determinismo histórico apontando a sociedade socialista como inexorável conseqüência do pleno desenvolvimento da sociedade capitalista e sua dissolução por suas próprias “contradições internas”. De outro lado, a sociedade socialista sendo produzida pela “práxis revolucionária”. Ora, se o processo histórico conduziria inevitavelmente ao socialismo, para que fazer revolução? E se era necessária uma revolução para chegar à sociedade socialista, como falar em determinação histórica?
Habilidosos sofistas dispõem de uma saída aparentemente convincente para o apontado impasse: o processo histórico é mesmo inexorável, porém pode ser retardado ou acelerado. A revolução é, portanto, uma aceleração do processo. Ora, se ele pode mesmo ser retardado ou acelerado mediante a ação humana, então temos de concluir que o homem faz a história. Se o homem faz a história, não tem o menor sentido falar em determinação inexorável do processo histórico por quaisquer fatores alheios à ação humana.
Esta obsessão marxista de pensar tudo em termos de dominantes e dominados torna-se ainda mais forte em Nietzsche (Ansell-Pearson,1994). para quem parece só haver uma linguagem: a da força e da dominação como expressões da assim chamada “vontade de poder”. E talvez ambas as obsessões possam encontrar sua origem na obscura “dialética do senhor e do escravo”, tal como esta apareceu na nebulosa e impenetrável Fenomenologia do Espírito de Hegel e voltou à cena com as tediosas perorações psicologistas de Sartre em O Ser e O Nada em que a relação sadomasoquista passou a ser a relação humana fundamental (Grossmann, 1984, pp.201-250) [Que despautério! Que mente doentia!].
Como poderíamos dissuadir quem visse, na vontade de potência e seus desdobramentos, uma das raízes da visão de mundo nazista? É sabido que a irmã de Nietzsche_ Elisabeth Förster-Nietzsche_ e seu marido _ Georg Förster_ eram conhecidos líderes do movimento pangermanista do século XIX, uma espécie de protonazismo. Wagner era um fervoroso adepto desta visão protonazista e falava uma linguagem bastante apreciada por ela. Há evidências de que Nietzsche não compartilhava essa ideologia abominável, mas também falava uma linguagem bastante apreciada por ela. Por que razão os nazistas gostavam de catar expressões de impacto nos textos de Nietzsche e não nos de Kant, por exemplo? Por uma razão bastante simples: a árida e racional linguagem kantiana _desprovida de metáforas pomposas e metonímias sedutoras_ dificilmente forneceria expressões manipuláveis para atender aos seus perversos propósitos.
Poderíamos apresentar um considerável número de passagens de Nietzsche, que se prestam facilmente a uma incorporação em Mein Kampf [Minha Luta_ aquele amontoado de sandices escritas por um cabo paranóico que se autopromoveu a general]. Por exemplo: todas as que enaltecem o uso da força e o desprezo pelos contratos e tratados. A teoria do contrato social [tal como defendida por Hobbes, Locke, Rousseau e outros pensadores nos séculos XVII e XVIII e mesmo no nosso século (Boucher & Kelly, 1994)] foi rejeitada por Nietzsche mediante uma versão sui generis da origem do Estado.
(...) bestas louras, uma raça de senhores e conquistadores, organizada para a guerra e dotada da capacidade de organizar, sem nenhuma hesitação coloca suas garras terríveis em um populacho superior em número mais ainda nômade e amorfo (...) Aquele que pode comandar é por natureza senhor (mestre), aquele que é violento e produtivo o que tem a ver com contratos? (Nietzsche, 1973., II, p.17, os grifos são nossos).
Evidentemente, há outras passagens de Nietzsche que deviam ser convenientemente esquecidas tanto por nazistas como por comunistas, pois_ embora Nietzsche considerasse o surgimento do Estado como uma manifestação da pura força e dominação de um grupo de seres humanos sobre outros_ não era um estatólatra como Hegel e Marx. Ao contrário, neste particular, seu pensamento estava muito mais próximo do anarquismo do que da idéia de que “Napoleão é o Espírito Absoluto montado a cavalo” e “O Estado é o próprio Deus caminhando pela terra” (Hegel). [ e a visão anárquica no pensamento de Nietzsche entrava em contradição com sua visão de uma sociedade aristocrática governada por um carismático “artista-tirano”]. Consideremos, por exemplo, esta interessante passagem: “Estado? O que é isso? Pois bem! Agora abri-me vossos ouvidos, pois vos direi minha palavra da morte dos povos. Estado chama-se o mais frio de todos os monstros frios. Friamente também ele mente; e esta mentira rasteja de sua boca: ‘Eu, o Estado, sou o povo’ “. (Nietzsche, 1973, I, p. 86).
Por que razão os nazistas apreciavam muito mais o drama musical wagneriano do que a ópera de Mozart? Por uma razão muito simples: a deste último não se prestava para a construção de cenários monumentais com louras valquírias cavalgando nos céus e não tinha um impacto suficientemente forte para estimular os guerreiros à batalha no crepúsculo dos deuses (Götterdämmerung). A mitologia nórdica, com seus deuses guerreiros _ aliada a cenários monumentais com fortes apelos ao grandioso e ao retumbante_ eram coisas extremamente propícias para a estetização da política pretendida pelos nazistas.
Walter Benjamin (1969, pp.217-252) tinha razão: o nazismo produziu a estetização da política e o bolchevismo, a politização da arte.
A diferença é que, para ele, a primeira alternativa era algo detestável e a segunda admirável, ao passo que, para nós, não sabemos dizer qual das duas foi a pior, pois a primeira transformou o discurso político em uma fala vazia de conteúdo, mas recheada com grandes espetáculos e pomposos rituais, ao passo que a segunda transformou a expre ento marxista parece colocar demasiada ênfase sobre o caráter reflexo da religião, ignorando a contribuição da atividade psíquica especificamente humana. Se não existisse no homem tal princípio ativo, se sua vida psíquica não passasse de um reflexo passivo do mundo, não se poderia conceber, no homem, uma disposição de compensar sua fraqueza diante das forças naturais e sociais pela criação da religião. Esta é a razão pela qual um estudo dos fatores subjetivos, que determinam o caráter da religião, desponta para nós como necessário, de modo a completar essa descrição das forças externas que conduzem o homem a exigir de si mesmo uma ajuda. E é justamente isto que a teoria freudiana tenta fazer. (Osborne, 1965, p.82).
Pensamos que o referido “estudo dos fatores subjetivos, que determinam o caráter da religião” foi justamente iniciado por R. Otto e desenvolvido por G. van der Leeuw (1966) e M. Eliade. Para todos estes autores, o que estava em jogo era compreender a experiência religiosa e seu significado para aqueles que participavam dela.
Sua atitude diante da complexidade do fenômeno religioso e da crença na divindade foi uma atitude de caráter compreensivo, ao passo que as atitudes tomadas por Marx, Freud, Nietzsche e outros eram posturas de caráter reducionista: eles não estavam interessados no significado da experiência religiosa_ tal como este se apresentava para os que a experimentavam_ mas sim em explicá-la como mero efeito simbólico produzido por outros fatores.
Para Freud, por exemplo, pouco importava se era o caso de um fenômeno religioso [a relação entre Moisés e o monoteísmo hebraico], um fenômeno artístico [a relação entre Leonardo da Vinci e suas obras] ou um relato de um sonho de um neurótico qualquer, pois a diversidade de representações e suas especificidades seriam inevitavelmente reduzidas a um mesmo esquema explicativo em que entrariam em cena a libido, o inconsciente, o complexo de Édipo, etc. Sonhos, obras de arte ou narrativas religiosas podiam ter diversos conteúdos manifestos, mas seu conteúdo latente era sempre sexual.
Ora, olhando para uma obra de arte como quem olha para uma prancha de teste projetivo_ como as conhecidas pranchas do Teste Rohrschach_ é possível ver erotismo até mesmo no neoplasticismo de Mondrian. “Ou, no meio da noite, imaginando algo temível, não é bastante fácil um arbusto ser tomado como um urso?” (Shakespeare, Sonho de Uma Noite de Verão, ato 1, cena 4).
Caso o explicador fosse Marx entrariam em cena os modos de produção, as lutas de classes, etc., pois, em ambos os casos, o que estava em jogo era um esquema explicativo simplista e redutor, podendo ser aplicado a qualquer fenômeno emergente no mundo da cultura, não importando quaisquer fatores relativos às características específicas do fenômeno em questão. Diante disto, não é de causar espécie que Marx considerasse a religião como a pior forma de alienação [o ópio do povo] e Nietzsche rotulasse o cristianismo como o “platonismo da plebe” e finalmente Freud visse a religião como: “uma neurose que o homem experimentou no curso da sua evolução” (Osborne, 1965, p. 84).
De acordo com o próprio Freud, a religião consiste em: (...) “ uma tentativa de dominar, com a ajuda de um mundo ideal, o mundo real em que vivemos. (...) mas ela não pode ter bom êxito. Sua doutrina traz consigo a marca do tempo de onde ela brotou, esta infância da humanidade atolada na ignorância. Seus consolos não são dignos de confiança; a experiência nos ensina que o mundo não é um paraíso de crianças”. (Freud, citado por Osborne, 1965, p.84).
De fato, a experiência nos ensina que o mundo está longe de ser um paraíso, mas a religião também ensina a mesma coisa, uma vez que nossos antepassados_ Adão e Eva_ comeram o fruto proibido da Árvore da Ciência do Bem e do Mal e, por isto mesmo, foram expulsos do Paraíso. Não cabe interpretar aqui este episódio: basta lembrar que as conseqüências provenientes da desobediência da ordem divina não produziram nada comparável ao “paraíso de crianças” a que se referiu Freud, porém a visão de um mundo extremamente inóspito e árido exigindo do homem um grande esforço na sua luta pela sobrevivência. O quadro pintado abaixo está muito mais próximo de um cru realismo do que de uma fantasia pueril, pois o que está em jogo está muito longe da pura e dadivosa mãe-natureza dos delírios românticos e “pré-ecologistas” de Rousseau:
E disse [Deus] em seguida ao homem: “Porque ouviste a voz de tua mulher e comeste o fruto da árvore que eu te havia proibido comer, a terra será maldita por tua causa. Tirarás dela com trabalhos penosos o teu sustento todos os dias da tua vida. Ela te produzirá espinhos e abrolhos, e tu comerás a erva da terra. Comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de que foste tirado, porque és pó, e em pó te hás de tornar”. (Gênese , 3, 17-19).
É inegável que tanto o judaísmo como o cristianismo e o islamismo_ acreditam em algo semelhante ao “mundo ideal” a que se referiu Freud contrastando-o com o “mundo real em que vivemos”. A diferença é que_ para Freud e muitos outros que pensam como ele neste particular_ esse mundo “ideal” não passa de uma fantasia descabida, ao passo que_ para aqueles que assumem seriamente a crença em qualquer uma dessas três religiões_ esse mundo é tão real quanto, ou até mais real do que, “o mundo real em que vivemos”.
Se nos colocarmos do ponto de vista da astronomia, não há nenhuma razão para acreditarmos na existência de um mundo suprafísico, assim como não há nenhuma razão para acreditarmos em Deus concebido como espírito e pessoa. Como vimos, as visões teístas não-religiosas não pressupõem nem uma coisa nem outra. Mas as visões teístas religiosas do judaísmo, do cristianismo e do islamismo pressupõem ambas, e não podem abrir mão destes pressupostos, sob o risco produzir uma grave descaracterização da própria visão religiosa. Assim como algumas imagens de Deus o vêem como um velho de longas barbas brancas, outras imagens vêem o “outro mundo” povoado de anjinhos barrocos tocando harpas ou coisa parecida.
Devemos convir que imagens desta natureza são demasiadamente pueris, pois o que está em jogo é um ser imaterial, onipotente, onipresente, etc. e uma outra dimensão ontológica em que estão os espíritos daqueles que se foram deste “mundo real em que vivemos”. Temos de concordar que não há nenhum fundamento científico para acreditar em nenhuma destas duas coisas. Mas teremos de examinar com cuidado os argumentos tradicionais de caráter filosófico.
Algumas vezes uma ênfase demasiada neste “outro mundo”_ como pode ser encontrada tanto entre pessoas comuns como entre místicos_ pode conduzir a um desinteresse ou mesmo a uma hostilidade em relação a este mundo real em que vivemos, porém a crença na existência desse outro mundo não conduz necessariamente a tais atitudes. Do modo como Freud e Nietzsche viam as coisas, parece que só havia lugar para a primeira alternativa. Nietzsche desferiu uma violenta crítica ao mundo das idéias de Platão e traçou um retrato do filósofo grego como se este fosse um místico afastado da vida comum, absorto na contemplação e completamente distanciado dos problemas sociais e políticos que afligiam seus contemporâneos.
Porém ele se esqueceu de que Platão fez diversas tentativas de remodelar Cidades-Estados como Siracusa, de acordo com suas concepções políticas (Strauss,1987, pp.33-89). Ele poderia até mesmo considerar a visão platônica autoritária e ditatorial_ e se fizesse isto, estaríamos de acordo com ele_ mas considerar Platão um místico distante deste mundo, inteiramente voltado para o outro mundo, é algo facilmente refutável com apoio nos textos do próprio filósofo, como é o caso da Sétima Carta. (Platão, 1950, vol.II, pp.1203-7).
O mesmo poderia ser dito do cristianismo_ rotulado por Nietzsche como “platonismo da plebe”. A crença na existência do outro mundo não impediu o forte desejo de transformar radicalmente este mundo real em que vivemos, ao contrário: fortaleceu o desejo de transformação. Não há necessariamente incompatibilidade entre a passividade da contemplação mística e a atividade da ação política, porque estes contrários nem sempre se situam no mesmo plano e nem sempre se encontram no mesmo momento.
Pode-se até criticar a religião cristã, em determinados momentos da história, por seu demasiado envolvimento com questões de ordem política, mas raramente por uma indiferença em relação ao mundo. O mesmo pode ser dito no tocante ao islamismo em que Maomé assumiu tanto o papel de um líder religioso como o de um líder político procurando a unificação de tribos árabes politeístas e hostis entre si. (Hourani, 1994, pp. 33-8). Filho de um pastor luterano, bem jovem ainda F. Nietzsche (1844-1900) se desencantou com o cristianismo, assim como ficou encantado com a visão filosófica de Arthur Schopenhauer (1788-1860) e com a música de Richard Wagner (1813-1883).
Enquanto professor de filologia clássica em Basiléia (Basel, na Suiça) escreveu um pequeno livro com um grande título: Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik: Oder Hellenismus und Pessimismus [O Nascimento da Tragédia pelo Espírito da Música: Ou Helenismo e Pessimismo]. Wilamowitz-Moellendorf_ um dos maiores helenistas da época _ desferiu uma crítica terrível ao referido livro de Nietzsche sugerindo mesmo que este se dedicasse a qualquer outra coisa que não a filologia clássica. Referindo-se a essa crítica, disse Gottfried Benn: “Nela se encontram expressões tais como ‘descuido’, ‘ignorância pueril’; que vergonha causa você, Nietzsche, à mãe Pforta; que amontoado de sandices” (Benn, 1977, p.114).
O aspecto fundamental da crítica de Wilamowitz-Moellendorf era que Nietzsche tinha se afastado demasiadamente das fontes documentais e tinha construído uma visão da tragédia ática, que estava muito mais de acordo com uma visão pessoal do que com a que podia ser reconstruída filologicamente [e é escusado dizer que a filologia é um domínio do conhecimento apoiado em fontes primárias, não um conjunto de palpites cheios de imaginação e fantasia] .
Não sabemos qual a resposta de Nietzsche, mas não é improvável que ele tivesse considerado o afamado helenista como um “positivista” desprovido de imaginação. Anos mais tarde, no entanto, o próprio Nietzsche repudiou sua obra de juventude alegando que estava apaixonado pela música wagneriana e que tinha projetado na Grécia Clássica a visão wagneriana de Gesamtkunstwerk [obra de arte total].
Wilamowitz-Moellendorf não era desprovido de imaginação; Nietzsche é que tinha imaginação demais. Esta passagem serve apenas para mostrar uma característica inerente ao temperamento nietzscheano em que a razão estava sempre ao sabor das ondas de poderosas paixões. Em um artista isto pode ser extremamente produtivo, mas em um filósofo é simplesmente lamentável. A função do exercício crítico não pode ser conduzida pelas oscilações e arrebatamentos da vida afetiva; ao contrário: deve se prevenir contra tais coisas fazendo o máximo possível para não se deixar levar por elas, ainda que não possa conseguir uma total isenção de ânimo e uma imunização perfeita. Referindo-se ao pensamento de Nietzsche, diz G. Benn:
Criou Nietzsche um sistema moral ou amoral ? Não. Anunciou uma filosofia? Para nada. Ele disse que “a fé nas categorias da razão é a causa do nada” e que “a irracionalidade de uma coisa não é um argumento contra a sua existência, porém uma condição desta mesma”.(...) “Tudo em mim é mentira_ disse o mago de Zaratustra_ mas o fato de que estou despedaçado, este meu caminhar em frangalhos, é autêntico”. Os conteúdos [dos temas abordados por ele] não tinham sentido, mas o dilaceramento da sua íntima essência através das palavras, o impulso de expressar-se, de formular, de deslumbrar, de incendiar era a sua existência. (Benn, 1977, p.117, o grifo é de Benn).
Um filósofo que abre a sua boca para confessar que tudo o que ele diz é mentira nos deixa em uma situação de extrema perplexidade. Devemos assumir que ele estava dizendo a verdade ou estava mentindo? Há um paradoxo clássico já examinado por nós em outro livro (Guerreiro, 1989, pp.27-48): “Epimênides, o cretense, disse: ‘Todos os cretenses são mentirosos”. Provavelmente, Nietzsche_ ao dizer que “Tudo em mim é mentira”_ não se deu conta da arapuca armada por ele contra ele mesmo. Isto não tinha importância nenhuma para seu exótico modo de pensar, porquanto considerava a lógica uma grande tolice e o Princípio de Não-Contradição uma invenção perversa de Aristóteles destinada a reprimir a expressão do pensamento profundo em que o embate dos contrários expressa a vida e o pulsar do ser [Que portentosa sandice!].Referindo-se ao pensamento de Nietzsche, J. Hirschberger fez uma recomendação que subscrevemos in totum:
Em nenhum outro filósofo é tão grande o perigo que o leitor se deixe encantar pelo estilo musical e se contente com as belas palavras. O que desponta para muitos como profundidade é tão-somente sentimento e afeição, coisas que Nietzsche é mestre em sugerir. Mas, em filosofia, nada aprendemos com meros sentimentos e palavras. São exigidas idéias, conceitos e razões. Mais importante do que a forma é o conteúdo. Ao ler Nietzsche, devemos nos perguntar incessantemente pelo conteúdo, se não quisermos ser burlados pela bela dicção poética (...). Perceber-se-á que à medida que se esgotam as palavras sonoras e sugestivas, distancia-se o conteúdo buscado. O conceito nuclear de Nietzsche, a vida, oferece o melhor exemplo disto. Que entende Nietzsche precisamente por “vida”_ esta noção a que ele confere tanta importância? (Hirschberger, 1978, vol. II, p.333, o grifo é nosso).
Cabe acrescentar que a pergunta crucial colocada por Hirschberger não é respondida satisfatoriamente por Nietzsche em nenhum lugar. Em parte, temos de reconhecer que a dificuldade é gerada pelo própria noção. Noções tais como as de “ser”, “vontade” e “vida” são demasiadamente vagas e escorregadias. Mas em parte também temos de reconhecer que filósofos como Nietzsche não estão nem um pouco preocupados com a precisão conceitual e menos ainda com a coerência argumentativa.
É sabido que Nietzsche detestava Sócrates por este ter cultivado ambas as coisas e ter fundado uma tradição de pensamento para a qual ambas estavam entre as maiores virtudes filosóficas. À dialética socrática, ele contrapunha o “pensamento poético” dos trágicos e dos filósofos pré-socráticos, mas nunca esclareceu como se processava tal pensamento sem definições precisas e sem construção argumentativa. É difícil conceber que eles pensassem por associação livre. O rompimento de Nietzsche com a filosofia de Schopenhauer, e posteriormente com a estética wagneriana_ principalmente por Wagner ter abandonado, os motivos fornecidos pela mitologia nórdica e adotado um motivo cristão com a criação de Parsifal_ tinha um ponto comum básico.
Segundo o próprio Nietzsche, ele teria se dado conta de que ambos nutriam uma visão “niilista e decadente”, a mesma que ele passou a atribuir ao “platonismo da plebe”, ou seja: ao cristianismo, que passou a ser visto como a expressão de uma “mentalidade de rebanho” [uma expressão figurativa pejorativa talvez inspirada no papel do “pastor” protestante como condutor das suas “ovelhas”]. Daí para diante, Nietzsche passou a nutrir uma espécie de individualismo aristocrático, que _ segundo pensamos_ tinha um aspecto positivo enquanto individualismo contrapondo-se a visões coletivistas [como a dos diversos tipos de socialismo], mas tinha um aspecto negativo enquanto aristocrático contrapondo-se veementemente a uma visão democrática. B. Russell fez uma observação sobre Nietzsche que se aplica inteiramente a Marx e mutatis mutandis a Freud.
A objeção de Nietzsche ao cristianismo é que ele é o responsável pela aceitação daquilo que Nietzsche chamou de “moral de escravos”. É curioso observar o contraste entre seus argumentos e os defendidos pelos filósofos que precederam a Revolução Francesa (...) Nietzsche não está interessado na verdade metafísica do cristianismo ou de qualquer outra religião; uma vez que ele está convencido de que nenhuma religião é realmente verdadeira, ele julga todas as religiões inteiramente pelos seus efeitos sociais. (Russell, 1946, p.792-3, o grifo é nosso).
Substituamos “sociais” por “psicológicos” e a afirmação acima pode ser aplicada a Freud. Quanto ao contraste referido por Russell, ele assume diversas faces, pois há diferentes posições entre os iluministas franceses em relação à religião. Como já vimos, La Mettrie e d’Holbach assumiram um decidido ponto de vista materialista e ateísta, mas outros pensadores rejeitaram a religião revelada, mas aceitaram a religião natural, como é o caso de Voltaire com sua adesão ao teísmo newtoniano.
É conhecida a crítica desferida por Voltaire à religião cristã e em especial à religião católica. Porém é importante assinalar que o irreverente pensador francês fazia uma clara distinção que não era reconhecida por Nietzsche. Ele distinguia “cristianismo” enquanto a doutrina pregada por Cristo e “cristianismo” enquanto a religião que se formou historicamente a partir desta mesma doutrina, e considerava que a segunda havia se afastado bastante da primeira. Sem esta distinção, ficam simplesmente ininteligíveis passagens como esta: “De todas as religiões, a religião cristã é sem dúvida a que deve inspirar o máximo de tolerância, embora até hoje os cristãos tenham sido os mais intolerantes dos homens”. (Voltaire, 1986, vol. II, p.15).
Embora Voltaire considerasse que as diversas religiões cristãs tinham se afastado, em maior ou menor grau, da doutrina de Cristo, quando da sua estada na Inglaterra ele se mostrou bastante impressionado com a simplicidade e a sinceridade religiosa dos quacres [quakers] reconhecendo neles uma séria tentativa de pra só não escondia sua admiração pelo pietismo como era um fiel seguidor desta seita_ fator que influenciou significativamente sua posição em relação à questão da moral e da religião, como veremos um pouco mais adiante. Nietzsche, por sua vez, não reconhecia a distinção feita por Voltaire. Sua rejeição da moral cristã era, antes de qualquer coisa, uma rejeição da visão moral contida na doutrina do próprio Cristo e, por extensão, uma rejeição da visão moral adotada pela cristandade, que não poderia ser acusada de qualquer infidelidade em relação aos valores da moral pregada por Cristo.
Profundamente insatisfeito com aquilo que considerava uma “moral de escravos”, uma “mentalidade de rebanho” e um “platonismo da plebe”, Nietzsche resolveu criar uma outra religião_ uma “religião laica”, se é que podemos usar esta contradictio in adjecto para expressar a substituição de uma figura religiosa por uma personagem literária inspirada em outra, ou seja: Nietzsche deixou de lado Cristo, deslocou sua prodigiosa imaginação [desprovida de qualquer lógica] para a antiga Pérsia, onde encontrou Zoroastro ou Zaratustra, o criador do masdeísmo, religião predominante no Irã (Pérsia) por volta de VI e VII A.C., muitos séculos antes da conversão deste país ao islamismo e da ascensão do xiismo e dos aiatolás.
Tal como expresso no Zend-Avesta, o zoroastrismo se caracterizava por conceber o mundo como uma luta constante entre Ormuzd (o bem) e o mal (Ahriman). Para uma mentalidade maniqueísta como a de Nietzsche, o líder religioso persa constituía um excelente modelo para a construção da sua personagem literária: Zaratustra. Uma das diferenças entre ambos é que o referido líder estava entre o bem e o mal, mas a personagem de Nietzsche nutria a arrogante e descabida pretensão de estar além do bem e do mal. Comportava-se como um verdadeiro profeta, pois desceu do seu isolamento nas montanhas para dirigir palavras solenes à plebe ignara e pouco estava se importando se sua fala oracular era entendida ou não pelos que o ouviam.
Como profeta, o Zaratustra de Nietzsche foi criado à sua imagem e semelhança: era completamente surdo; sua missão se limitava a transmitir suas sábias mensagens a ignorantes incapazes de compreender a profundidade das suas parábolas e das suas máximas. Ele estava ali para proclamar verdades absolutas, não para dialogar com néscios. E sua principal verdade absoluta era o Super-Homem [não o Superman das revistas em quadrinhos, mas sim o Übermensch].
Desse modo, Nietzsche criou Zaratustra e Zaratustra criou o Übermensch. Temos de convir que é algo bastante insólito, até mesmo de um ponto de vista literário, alguém criar uma personagem que cria uma personagem. Mas não se trata de um metateatro como o das Seis Personagens em Busca de um Autor de L. Pirandello. Zaratustra considerava que o homem estava superado e pregava o advento do Super-Homem.
Certamente, ele não era concebido como alguém capaz de desafiar a força da gravidade, resistir a balas de metralhadora e só ser afetado pela kriptonita, mas sim como um novo homem de uma nova era [Que expressão mítica poderosa!], algo bastante semelhante ao homem emergente da sociedade sem classes do comunismo utópico de Marx, com a diferença de que_ na visão utópica de Nietzsche_ estava em jogo uma sociedade aristocrática mantida sob o férreo domínio de um líder carismático, ao passo que_ na visão utópica de Marx _ a ditadura do proletariado_ após uma curta e necessária estada no poder, abriria mão graciosamente dele [Que ingenuidade!] em nome de uma sociedade sem Estado e sem classes em que todos viveriam prósperos e felizes para sempre [como a princesa e seu príncipe encantado em um conto de fadas].
Russell entendeu que Nietzsche condenava o amor cristão, porque o considerava um produto do medo. De acordo com Russell, Nietzsche considerava que o cristão pensava assim: “Tenho medo de que meu próximo me faça algum mal e, assim sendo, procuro persuadi-lo de que o amo. Se eu fosse mais forte e mais ousado, mostraria abertamente para ele o desprezo que sinto por ele”.
Diante deste raciocínio escabroso atribuído por Nietzsche ao cristão, Russell conclui que não passou pela cabeça de Nietzsche a possibilidade de um homem sentir um genuíno amor universal, e isto porque o próprio Nietzsche sentia um ódio e um medo quase universais, que ele mal podia disfarçar com uma aparente superioridade. O seu homem “nobre”_ que não era outro senão ele mesmo envolto nos seus devaneios pueris_ era um ser completamente desprovido de solidariedade e compaixão, arrogante, cruel e implacável, unicamente interessado em conquistar um poder cada vez maior. Russell lembra que o Rei Lear no auge da sua loucura dizia:
I will do such things_
What they are yet I know not_ but they
shall be
The terrror of the earth
[trad. literal: Farei tais coisas_ o que são
não sei ainda _ mas elas serão o terror da
terra] .
Russell (1946, p.795) considerou que esta fala ensandecida da personagem shakespeariana era a filosofia de Nietzsche in nuce. De acordo ainda com Russell, nunca ocorreu a Nietzsche que a sede de poder, de que ele investiu seu Super-Homem, é ela mesma um produto do medo. Aqueles que não temem seus próximos ou vizinhos [neighbours] não sentem nenhuma necessidade de dominá-los. Os homens que superaram o medo não possuem a qualidade atribuída por Nietzsche ao seu “tirano-artista”. Porém o mesmo não se pode dizer de homens que_ como o imperador Nero _ tentavam se deliciar com a música e o massacre, enquanto estavam repletos de medo de uma inevitável revolta da guarda palaciana. (Russell, 1946, p. 795).
No que diz respeito a Deus, Nietzsche não se estendeu tanto quanto no tocante à religião e especialmente ao cristianismo. Porém deixou uma sentença retumbante, para que seus admiradores e intérpretes pudessem avaliar sua profundidade filosófica: Deus está morto.
Ao que tudo indica, para ele, Nietzsche, Deus estava mesmo morto; mas o diabo estava mais vivo do que nunca e exercia sobre ele poderosa influência. Obviamente, não se tratava de um homem vermelho como as chamas do inferno e com chifres e rabo de bode, mas sim de uma grave perturbação mental responsável por uma imaginação delirante e sem quaisquer peias. Não há a menor dúvida de que a literatura universal ganhou muito com isto, mas não há também a menor dúvida de que a filosofia perdeu muito mais [pois o delírio sem peias pode até ser uma virtude literária, mas é com certeza um grave vício filosófico].
Após a grandiloqüente e obscura prosa hegeliana, tornou-se uma espécie de cacoete mental decretar a morte e o fim de uma série de coisas. O próprio Hegel não vacilou um segundo em decretar, do alto da sua cátedra carcomida e poeirenta, “a morte da arte” e “o fim da história”. Porém, a prodigiosa criatividade da arte moderna emergente aos finais do século XIX e inícios do século XX parecia não querer aceitar nenhum atestado de óbito e a transformação incessante dos costumes e das estruturas sociais ao longo do tempo não se deteve na sua marcha para o futuro, simplesmente porque um metafísico alemão assim desejava. Desejo é uma coisa que dá e passa, e a história só acaba para quem morre ou já está morto e não sabe.
Apesar de Nietzsche, milhões de pessoas neste nosso fin de siècle_ não importando os avanços da ciência e da tecnologia, seu grau de instrução, sua classe social, etc. _ continuam mantendo uma crença viva e palpitante em Deus.
Devemos entender que se trata de mero resquício do passado remoto da humanidade, de algo emergente de uma consciência atolada na ignorância primitiva [como queria Freud], de um entorpecente para amenizar as agruras da vida social [como queria Marx] , de uma necessidade, inerente à natureza humana, de crer em um ser Todo-Poderoso [como queria William James] ou devemos entender que se trata de uma compreensível decorrência da existência e da importância de Deus na vida dos seres humanos?
Se Deus existe, a religião não pode ser reduzida a nenhum fator de caráter econômico, social nem psicológico, o que não quer dizer que as práticas religiosas não contenham aspectos econômicos, sociais e psicológicos, pois são práticas desempenhadas por homens_ seres finitos e falíveis_ vivendo dentro de determinadas condições sociais e históricas.
Cabe lembrar que os três grandes arquitetos do ateísmo do nosso tempo_ Marx, Freud e Nietzsche_ parecem não ter conseguido superar o que, para eles, não passava de mais um produto da falsa consciência. Marx não conseguiu se livrar da concepção circular da história de caráter hebraico-cristão, Nietzsche só se livrou de Cristo mediante o culto de Zaratustra e Freud encontrou no complexo de Édipo e no fatalismo místico da tragédia clássica uma versão laica para o pecado original e para a predestinação divina. Assim sendo, não é de surpreender que, ao longo do nosso século, marxismo, freudismo e nietzschianismo acabassem se transformando em verdadeiras religiões laicas cultuadas por fervorosos adeptos. Se a religião era o ópio do povo, Marx, Freud e Nietzsche eram viciados irrecuperáveis e não sabiam.