A
interpretação dos sonhos - S.Freud
Capítulo I - A LITERATURA CIENTÍFICA QUE TRATA DOS
PROBLEMAS DOS
SONHOS
Nas páginas
que seguem, apresentarei provas de que existe uma técnica psicológica que
torna
possível
interpretar os sonhos, e que, quando esse procedimento é empregado, todo
sonho se revela como
uma
estrutura psíquica que tem um sentido e pode ser inserida num ponto
designável nas atividades mentais
da vida de
vigília. Esforçar-me-ei ainda por elucidar os processos a que se devem a
estranheza e a obscuridade
dos sonhos e
por deduzir desses processos a natureza das forças psíquicas por cuja ação
concomitante ou
mutuamente
oposta os sonhos são gerados. A essa altura, minha descrição se
interromperá, pois terá atingido
um ponto em
que o problema dos sonhos se funde com problemas mais abrangentes cuja
solução deve ser
abordada com
base num material de outra natureza.
Apresentarei,
à guisa de prefácio, uma revisão do trabalho empreendido por autores
anteriores sobre
o assunto,
bem como a posição atual dos problemas dos sonhos no mundo da ciência,
visto que, no curso de
meu exame,
não terei muitas ocasiões de voltar a esses tópicos. Pois, apesar de
muitos milhares de anos de
esforço, a
compreensão científica dos sonhos progrediu muito pouco fato tão
genericamente aceito na
literatura
que parece desnecessário citar exemplos para confirmá-lo. Nesses escritos,
dos quais consta uma
relação ao
final de minha obra, encontram-se muitas observações estimulantes e uma
boa quantidade de
material
interessante relacionado com nosso tema, porém pouco ou nada que aborde a
natureza essencial dos
sonhos ou
ofereça uma solução final para qualquer de seus enigmas. E menos ainda, é
claro, passou para o
conhecimento
dos leigos estudiosos.
Talvez se
possa indagar qual terá sido o ponto de vista adotado em relação aos
sonhos pelas raças
primitivas
dos homens e que efeito os sonhos teriam exercido na formação de suas
concepções do mundo e da
alma; e esse
é um assunto de tão grande interesse que só com extrema relutância
meabstenho de abordá-lo
nesse
sentido. Devo encaminhar meus leitores às obras-padrão de Sir John
Lubbock, Herbert Spencer, E. B.
Tylor e
outros, e acrescentarei apenas que só poderemos apreciar a ampla gama
desses problemas e
especulações
quando tivermos tratado da tarefa que aqui se coloca diante de nós a
interpretação dos
sonhos.
A visão
pré-histórica dos sonhos sem dúvida ecoou na atitude adotada para com os
sonhos pelos
povos da
Antiguidade clássica. Eles aceitavam como axiomático que os sonhos estavam
relacionados com o
mundo dos
seres sobre-humanos nos quais acreditavam, e que constituíam revelações de
deuses e demônios.
Não havia
dúvida, além disso, de que, para aquele que sonhava, os sonhos tinham uma
finalidade importante,
que era, via
de regra, predizer o futuro. A extraordinária variedade no conteúdo dos
sonhos e na impressão que
produziam
dificultava, todavia, ter deles qualquer visão uniforme, e tornava
necessário classificá-los em
numerosos
grupos e subdivisões conforme sua importância e fidedignidade. A posição
adotada perante os
sonhos por
filósofos isolados na Antiguidade dependia, naturalmente, até certo ponto,
da atitude destes em
relação à
adivinhação em geral.
Nas duas
obras de Aristóteles que versam sobre os sonhos, ele já se tornaram objeto
de estudo
psicológico.
Informam-nos as referidas obras que os sonhos não são enviados pelos
deuses e não são de
A Interpretação dos Sonhos I Sigmund
Freud
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natureza
divina, mas que são demoníacos, visto que a natureza é demoníaca, e
não divina. Os sonhos, em
outras
palavras, não decorrem de manifestações sobrenaturais, mas seguem as leis
do espírito humano,
embora este,
é verdade, seja afim do divino. Definem-se os sonhos como a atividade
mental de quem dorme,
na medida em
que esteja adormecido.
Aristóteles
estava ciente de algumas características da vida onírica. Sabia, por
exemplo, que os
sonhos dão
uma construção ampliada aos pequenos estímulos que surgem durante o sono.
Os homens
pensam estar
caminhando no meio do fogo e sentem um calor enorme, quando há apenas um
pequeno
aquecimento
em certas partes. E dessa circunstância infere ele a conclusão de que os
sonhos podem muito
bem revelar
a um médico os primeiros sinais de alguma alteração corporal que não tenha
sido observada na
vigília.
Antes da
época de Aristóteles, como sabemos, os antigos consideravam os sonho não
como um
produto da
mente que sonhava, mas como algo introduzido por uma instância divina; e,
já então, as duas
correntes
antagônicas que iremos encontrar influenciando as opiniões sobre a vida
onírica em todos os
períodos da
história se faziam sentir. Traçou-se a distinção entre os sonhos
verdadeiros e válidos, enviados ao
indivíduo
adormecido para adverti-lo ou predizer-lhe o futuro, e os sonhos vãos,
falazes e destituídos de valor,
cuja
finalidade era desorientá-lo ou destruí-lo.
Gruppe
(1906, 2, 390) cita uma classificação dos sonhos, de Macrobius e
Artemidorus [de Daldil (ver
em [1])],
seguindo essa orientação Os sonhos eram divididos em duas classes.
Supunha-se que uma classe
fosse
influenciada pelo presente ou pelo passado, mas sem nenhum significado
futuro. Abrangia o enunia ou
insomnia, que
reproduzia diretamente uma certa representação ou o seu oposto por
exemplo, de fome ou
sua saciação
, e o jantsmata, que emprestava uma extensão fantástica à representação
por exemplo, o
pesadelo ou
ephialtes. A outra
classe, ao contrário, supostamente determinava o futuro. Abrangia (1)
profecias
diretas
recebidas num sonho (o crhmatismV ou oraculum), (2)
previsões de algum evento futuro (o rama ou
visio), e (3)
sonhos simbólicos, que precisavam de interpretação (o neiroV ou
somnium). Essa
teoria persistiu
durante
muitos séculos.
Essa
variação no valor que se deveria atribuir aos sonhos estava intimamente
relacionada com o
problema de
interpretá-los. Em geral, esperavam-se importantes conseqüências dos
sonhos. Mas nem todos
eles eram
imediatamente compreensíveis, e era impossível dizer se um sonho
inteligível em particular não
estaria
fazendo alguma comunicação importante. Isso proporcionou o incentivo para
que se elaborasse um
método
mediante o qual o conteúdo ininteligível de um sonho pudesse ser
substituído por outrocompreensível e
significativo.
Nos últimos anos da Antiguidade, Artemidorus de Daldis foi considerado a
maior autoridade na
interpretação
dos sonhos, e a sobrevivência de sua obra exaustiva [Oneirocritica] deve
compensar-nos pela
perda dos
outros escritos sobre o mesmo assunto.
A visão
pré-científica dos sonhos adotada pelos povos da Antigüidade estava, por
certo, em completa
harmonia com
sua visão do universo em geral, que os levou a projetar no mundo exterior,
como se fossem
realidades,
coisas que de fato só gozavam de realidade dentro de suas próprias mentes.
Além disso, seu ponto
de vista
sobre os sonhos levava em conta a principal impressão produzida na mente
desperta, pela manhã,
pelo que
resta de um sonho na memória: uma impressão de algo estranho, advindo de
outro mundo e
contrastando
com os demais conteúdos da mente. A propósito, seria um erro supor que a
teoria da origem
A Interpretação dos Sonhos I Sigmund
Freud
13
sobrenatural
dos sonhos está desprovida de defensores em nossos próprios dias. Podemos
deixar de lado os
escritores
carolas e místicos, que de fato estão perfeitamente justificados em
permanecerem ocupados com o
que restou
do outrora amplo domínio do sobrenatural enquanto esse campo não é
conquistado pela explicação
científica.
Mas, além deles, depara-se com homens de visão esclarecida, sem quaisquer
idéias extravagantes,
que procuram
apoiar sua fé religiosa na existência e na atividade de forças espirituais
sobre-humanas
precisamente
pela natureza inexplicável dos fenômenos dos sonhos. (Cf. Haffner, 1887.)
A alta estima em que
é tida a
vida onírica por algumas escolas de filosofia (pelos seguidores de
Schelling, por exemplo) é nitidamente
um eco da
natureza divina dos sonhos que era incontestada na Antiguidade. Tampouco
chegaram ao fim os
debates
acerca do caráter premonitório dos sonhos e de seu poder de predizer o
futuro, pois as tentativas de
dar uma
explicação psicológica têm sidoinsuficientes para cobrir o material
coletado, por mais decididamente
que as
simpatias dos que são dotados de espírito científico se inclinem contra a
aceitação de tais crenças.
É difícil
escrever uma história do estudo científico dos problemas dos sonhos
porque, por mais valioso
que tenha
sido esse estudo em alguns pontos, não se pode traçar nenhuma linha de
progresso em qualquer
direção
específica. Não se lançou nenhum fundamento de descobertas seguras no qual
um pesquisador
posterior
pudesse edificar algo; ao contrário, cada novo autor examina os mesmos
problemas de novo e
recomeça,
por assim dizer, do início. Se eu tentasse relacionar em ordem cronológica
aqueles que têm escrito
sobre o
assunto e apresentasse um sumário de seus pontos de vista sobre os
problemas dos sonhos, teria de
abandonar
qualquer esperança de apresentar um quadro geral abrangente do atual
estado dos conhecimentos
sobre o
assunto. Optei, portanto, por estruturar meu relato de acordo com tópicos,
e não com autores, e à
medida que
for levantando cada problema relacionado com o sonho, apresentarei
qualquer material que a
literatura
contenha para sua solução.
Visto,
contudo, ter-me sido impossível englobar toda a literatura sobre o tema,
amplamente dispersa
como é e
invadindo muitos outros campos, sou compelido a pedir a meus leitores que
se dêem por satisfeitos
desde que
nenhum fato fundamental ou ponto de vista importante seja deixado de lado
em minha descrição.
Até pouco
tempo atrás, a maioria dos autores que escreviam sobre o assunto sentia-se
obrigada a
tratar o
sono e os sonhos como um tópico único, e em geral abordava, além disso,
condições análogas
fronteiriças
à patologia e estados semelhantes aos sonhos, como as alucinações, visões
etc. As últimas obras,
pelo
contrário, mostram preferência por um tema restrito e tomam por objeto,
talvez, alguma questão isolada no
campo da
vida onírica. Agradar-me-ia ver nessa mudança de atitude a expressão de
uma convicção de que,
nessas
questões obscuras, só será possível chegar a explicações e resultados
sobre os quais haja acordo
mediante uma
série de investigações pormenorizadas. Uma pesquisa detalhada desse
tipo,
predominantemente
psicológica por natureza, é tudo o que tenho a oferecer nestas páginas.
Tive poucas
oportunidades
de lidar com o problema do sono, posto que esse é essencialmente um
problema da fisiologia,
muito embora
uma das características do estado de sono deva ser a de promover
modificações nas condições
de
funcionamento do aparelho mental. A literatura sobre o tema do sono,
conseqüentemente, não é
considerada
adiante.
As questões
levantadas por uma indagação científica sobre os fenômenos dos sonhos como
tais
podem ser
agrupadas sob as epígrafes que se seguem, embora não se possa evitar certa
dose de
superposição.
A Interpretação dos Sonhos I Sigmund
Freud
14
(A) A
RELAÇÃO DOS SONHOS COM A VIDA DE VIGÍLIA
O julgamento
simplista de vigília feito por alguém que tenha acabado de acordar presume
que seus
sonhos,
mesmo que não tenham eles próprios vindo de outro mundo, ao menos o haviam
transportado para
outro mundo.
O velho fisiólogo Burdach (1838, 499), a quem devemos um relato cuidadoso
e sagaz dos
fenômenos
dos sonhos, expressou essa convicção num trecho muito citado: Nos sonhos,
a vida cotidiana, com
suas dores e
seus prazeres, suas alegrias e mágoas, jamais se repete. Pelo contrário,
os sonhos têm como
objetivo
verdadeiro libertar-nos dela. Mesmo quando toda a nossa mente está repleta
de algo, quando estamos
dilacerados
por alguma tristeza profunda, ou quando todo o nosso poder intelectual se
acha absorvido por
algum
problema, o sonho nada mais faz do que entrar em sintonia com nosso estado
de espírito e representar a
realidade
em símbolos. I. H.
Fichte (1864, 1, 541), no mesmo sentido, fala efetivamente em
sonhos
complementares
e os descreve como um dos benefícios secretos da natureza autocurativa do
espírito.
Strümpell
(1877, 16) escreve um sentido semelhante em seu estudo sobre a natureza e
origem dos sonhos
uma obra
ampla e merecidamente tida em alta estima: O homem que sonha fica
afastado do mundo da
consciência
de vigília. E também (ibid., 17): Nos sonhos, nossa recordação do
conteúdo ordenado da
consciência
de vigília e de seu comportamento normal vale tanto como se estivesse
inteiramente perdido. E de
novo (ibid.,
19) escreve que a mente é isolada, nos sonhos, quase sem memória, do
conteúdo e assuntos
comuns da
vida de vigília.
A grande
maioria dos autores, contudo, assume um ponto de vista contrário quanto à
relação entre os
sonhos e a
vida de vigília. Assim, diz Haffner (1887, 245): Em primeiro lugar, os
sonhos dão prosseguimento à
vida de
vigília. Nossos sonhos se associam regularmente às representações que
estiveram em nossa
consciência
pouco antes. A observação acurada quase sempre encontra um fio que liga o
sonho às
experiências
da véspera. Weygandt (1893, 6) contradiz especificamente o enunciado de
Burdach que acabo de
citar: Pois
muitas vezes, e aparentemente na maioria dos sonhos, pode-se observar que
eles de fato nos
levam de
volta à vida comum, em vez de libertar-nos dela. Maury (1878, 51)
apresenta uma fórmula
concisa:Nous
rêvons de ce que nous avons vu, dit, désiré ou fait; enquanto Jessen, em
seu livro sobre
psicologia
(1855, 530), observa mais extensamente: O conteúdo de um sonho é,
invariavelmente, mais ou
menos
determinado pela personalidade individual daquele que sonha, por sua
idade, sexo, classe, padrão de
educação e
estilo de vida habitual, e pelos fatos e experiências de toda a sua vida
pregressa.
A atitude
menos comprometedora sobre esta questão é adotada por J. G. E. Maass, o
filósofo (1805,
[1, 168 e
173]), citado por Winterstein (1912): A experiência confirma nossa visão
de que sonhamos com maior
freqüência
com as coisas em que se centralizam nossas mais vivas paixões. E isso
mostra que nossas paixões
devem ter
influência na formação de nossos sonhos. O homem ambicioso sonha com os
lauréis que conquistou
(ou imagina
ter conquistado) ou com aqueles que ainda tem de conquistar: já o
apaixonado se ocupa, em seus
sonhos, com
o objeto de suas doces esperanças
Todos os desejos e aversões sensuais
adormecidos no
coração
podem, se algo os puser em movimento, fazer com que o sonho brote das
representações que estão
associadas
com eles, ou fazer com que essas representações intervenham num sonho já
presente.
A Interpretação dos Sonhos I Sigmund
Freud
15
A mesma
concepção foi adotada na Antigüidade quanto à dependência do conteúdo dos
sonhos em
relação à
vida de vigília. Radestock (1879, 134) relata-nos como, antes de iniciar
sua expedição contra a Grécia,
Xerxes
recebeu judiciosos conselhos de natureza desencorajadora, mas foi sempre
impelido por seus sonhos a
prosseguir,
ao que Artabanus, o velho e sensato intérprete persa dos sonhos,
observou-lhe pertinentemente
que, via de
regra, os quadros oníricos contêm aquilo que o homem em estado de vigília
já pensa.
O poema
didático de Lucrécio, De rerum natura, encerra o
seguinte trecho (IV, 962):
Et quo
quisque fere studio devinctus adhaeretaut quibus in rebus multum sumus
ante moratiatque in
ea ratione
fuit contenta magis mens,in somnis eadem plerumque videmur obire;causidici
causas agere et
componere
leges,induperatores pugnare ac proelia obire
Cícero
(De divinatione, II, lxvii,
140) escreve exatamente no mesmo sentido que Maury tantos
anos
depois:
Maximeque reliquiae rerum earum moventur in animis et agitantur de quibus
vigilantes aut cogitavimus
aut
egimus.
A
contradição entre esses dois pontos de vista sobre a relação entre vida
onírica e vida de vigília
parece de
fato insolúvel. É portanto relevante, nesta altura, relembrar o exame do
assunto por Hildebrandt
(1875, 8 e
segs.), que acredita ser completamente impossível descrever as
características dos sonhos, salvo
por meio de
uma série de [três] contrastes que parecem acentuar-se em contradições.
O primeiro desses
contrastes,
escreve ele, é proporcionado, por um lado, pela completude com que os
sonhos são isolados e
separados da
vida real e atual, e, por outro, por sua constante interpretação e por sua
constante dependência
mútua. O
sonho é algo completamente isolado da realidade experimentada na vida de
vigília, algo, como se
poderia
dizer, como uma existência hermeticamente fechada e toda própria, e
separada da vida real por um
abismo
intransponível. Ele nos liberta da realidade, extingue nossa lembrança
normal dela, e nos situa em outro
mundo e numa
história de vida inteiramente diversa, que, em essência, nada tem a ver
com a nossa história
real
Hildebrandt prossegue demonstrando como, ao adormecermos, todo o nosso
ser, com todas as suas
formas de
existência, desaparece, por assim dizer, por um alçapão invisível.
Então, talvez o sonhador
empreenda
uma viagem marítima até Santa Helena para oferecer a Napoleão, que ali se
encontra prisioneiro,
uma barganha
primorosa em vinhos da Mosela. É recebido com extrema afabilidade pelo
ex-imperador e chega
quase a
lamentar-se quando acorda e sua curiosa ilusão é destruída. Mas,
comparemos a situação do sonho,
prossegue
Hildebrandt, com a realidade. O sonhador nunca foi negociante de vinhos,
nem jamais desejou sê-lo.
Nunca fez
uma viagem marítima e, se o fizesse, Santa Helena seria o último lugar do
mundo que escolheria
para
visitar. Não nutre quaisquer sentimentos de simpatia para com Napoleão,
mas, ao contrário, um violento
ódio
patriótico. E, além disso tudo, nem sequer era nascido quando Napoleão
morreuna ilha, de modo que ter
quaisquer
relações pessoais com ele estaria além dos limites da possibilidade.
Assim, a experiência onírica
parece algo
estranho, inserido entre duas partes da vida perfeitamente contínuas e
compatíveis entre si.
E contudo,
continua Hildebrandt [ibid., 10], o que parece ser o contrário disso é
igualmente
verdadeiro e
correto. Apesar de tudo, o mais íntimo dos relacionamentos caminha de mãos
dadas, creio eu,
com o
isolamento e a separação. Podemos mesmo chegar a dizer que o que quer que
os sonhos ofereçam, seu
material é
retirado da realidade e da vida intelectual que gira em torno dessa
realidade
Quaisquer que sejam
os estranhos
resultados que atinjam, eles nunca podem de fato libertar-se do mundo
real; e tanto suas
A Interpretação dos Sonhos I Sigmund
Freud
16
estruturas
mais sublimes como também as mais ridículas devem sempre tomar de
empréstimo seu material
básico, seja
do que ocorreu perante nossos olhos no mundo dos sentidos, seja do que já
encontrou lugar em
algum ponto
do curso de nossos pensamentos de vigília em outras palavras, do que já
experimentamos,
externa ou
internamente.
(B) O
MATERIAL DOS SONHOS A MEMÓRIA NOS SONHOS
Todo o
material que compõe o conteúdo de um sonho é derivado, de algum modo, da
experiência, ou
seja, foi
reproduzido ou lembrado no sonho ao menos isso podemos considerar como
fato indiscutível. Mas
seria um
erro supor que uma ligação dessa natureza entre o conteúdo de um sonho e a
realidade esteja
destinada a
vir à luz facilmente, como resultado imediato da comparação entre ambos. A
ligação exige, pelo
contrário,
ser diligentemente procurada, e em inúmeros casos pode permanecer oculta
por muito tempo. A
razão disso
está em diversas peculiaridades exibidas pela faculdade da memória nos
sonhos, e que, embora
geralmente
observadas, até hoje têm resistido à explicação. Vale a pena examinar
essas características mais
de
perto.
É possível
que surja, no conteúdo de um sonho, um material que, no estado de vigília,
não
reconheçamos
como parte de nosso conhecimento ou nossa experiência. Lembramo-nos,
naturalmente, de ter
sonhado com
a coisa em questão, mas não conseguimos lembrar se ou quando a
experimentamos na vida real.
Ficamos
assim em dúvida quanto à fonte a que recorreu o sonho e sentimo-nos
tentados a crer que os sonhos
possuem uma
capacidade de produção independente. Então, finalmente, muitas vezes após
um longo intervalo,
alguma nova
experiência relembra a recordação perdida do outro acontecimento e, ao
mesmo tempo, revela a
fonte de
sonho. Somos assim levados a admitir que, no sonho, sabíamos e nos
recordávamos de algo que
estava além
do alcance de nossa memória de vigília.
Um exemplo
particularmente impressionante disso é fornecido por Delboeuf [1885, [1]],
extraído de
sua própria
experiência. Viu ele num sonho o quintal de sua casa, coberto de neve, e
sob ela encontrou dois
pequenos
lagartos semicongelados e enterrados. Sendo muito afeiçoado aos animais,
apanhou-os, aqueceu-os
e os levou
de volta para o pequeno buraco que ocupavam na alvenaria. Deu-lhes ainda
algumas folhas de uma
pequena
samambaia que crescia no muro, as quais, como sabia, eles muito
apreciavam.No sonho, ele
conhecia o
nome da planta: Asplenium ruta muralis. O sonho
prosseguiu e, após uma digressão, voltou aos
lagartos.
Deboeuf viu então, para sua surpresa, dois outros lagartos que se ocupavam
dos restos da
samambaia.
Depois, olhou ao redor e viu um quinto e a seguir um sexto lagarto, que se
dirijam para o buraco
no muro, até
que toda a estrada fervilhava com uma procissão de lagartos, todos se
movimentando na mesma
direção
e
assim por diante.
Quando
desperto, Delboeuf sabia os nomes em latim de pouquíssimas plantas, e
Asplenium não
estava entre
eles. Para sua grande surpresa, pôde confirmar o fato de que realmente
existe uma samambaia
com esse
nome. Sua denominação correta é Asplenium ruta muraria, que fora
ligeiramente deturpada no sonho.
Isso
dificilmente poderia ser uma coincidência; e, para Delboeuf, continuou a
ser um mistério o modo como
viera a
conhecer o nome Asplenium no
sonho.
O sonho
ocorreu em 1862. Dezesseis anos depois, quando o filósofo visitava um de
seus amigos, viu
um pequeno
álbum de flores prensadas, do tipo dos que são vendidos aos estrangeiros
como lembrança em
algumas
partes da Suíça. Começou então a recordar-se de algo abriu o herbário,
encontrou a Asplenium de
seu sonho e
viu o nome em latim, escrito por seu próprio punho, abaixo da flor. Os
fatos podiam agora ser
verificados.
Em 1860 (dois anos antes do sonhos com os lagartos), uma irmã desse mesmo
amigo, em viagem
de
lua-de-mel, fizera uma visita a Delboeuf. Trazia consigo o álbum, que
seria um presente dela ao irmão, e
Delboeuf
deu-se ao trabalho de escrever sob cada planta seca o nome em latim,
ditado por um botânico.
Um feliz
acaso, que tornou esse exemplo tão digno de ser recordado, permitiu a
Delboeuf reconstruir
mais uma
parte do conteúdo do sonho até sua fonte esquecida. Um belo dia, em 1877,
aconteceu-lhe pegar um
velho volume
de um periódico ilustrado, e nele encontrar uma fotografia de toda a
procissão de lagartos com
que sonhara
em 1862. O volume trazia a data de 1861, e Delboeuf se lembrava de ter
sido assinante da
publicação
desde seu primeiro número.
O fato de os
sonhos terem sob seu comando lembranças que são inacessíveis na vida de
vigília é tão
notável, e
de tal importância teórica, que eu gostaria de chamar ainda mais atenção
para ele, relatando mais
alguns
sonhos hipermnésicos. Maury [1878, 142] conta-nos como, por algum tempo,
a palavra Mussidan
surgia e
ressurgia em sua mente durante o dia. Nada sabia a respeito dela, a não
ser que era o nome de uma
pequena
cidade da França. Certa noite, sonhou que conversava com alguém que lhe
dizia tervindo de
Mussidan, e
que, ao lhe perguntarem onde ficava isso, respondia ser uma pequena cidade
do Departamento de
Dordogne. Ao
acordar, Maury não nutria nenhuma crença na informação que lhe fora
transmitida no sonho;
soube por um
jornaleiro, contudo, que era perfeitamente correta. Nesse caso, a
realidade do conhecimento
superior do
sonho foi confirmada, mas não se descobriu a fonte esquecida desse
conhecimento.
Jessen
(1855, 551) relata um fato muito semelhante num sonho datado de época mais
remota: A
essa classe
pertence, entre outros, um sonho do velho Scaliger (citado por Hennings,
1874, 300), que escreveu
um poema em
louvor dos famosos homens de Verona. Um homem chamado Brugnolus
apareceu-lhe num
sonho e se
queixou de ter sido desprezado. Embora Scaliger não conseguisse lembrar-se
de jamais ter ouvido
falar dele,
escreveu alguns versos a seu respeito. Seu filho soube posteriormente, em
Verona, que alguém
chamado
Brugnolus de fato fora ali famoso como crítico.
O Marquês
dHervey de St. Denys [1867, 305], citado por Vaschide (1911, 23 e seg.),
descreve um
sonho
hipermnésico que possui uma peculiaridade especial, pois foi seguido de
outro que completou o
reconhecimento
do que, a princípio, foi lembrança não identificada: Certa feita, sonhei
com uma jovem de
cabelos
dourados, a quem vi conversando com minha irmã enquanto lhe mostrava um
bordado. Ela me pareceu
muito
familiar no sonho e pensei já tê-la visto muitas vezes. Depois que
acordei, ainda tinha seu rosto muito
nitidamente
diante de mim, mas era totalmente incapaz de reconhecê-lo. Voltei a dormir
e o quadro onírico se
repetiu
Mas, nesse segundo sonho, falei com a dama de cabelos louros e
perguntei-lhe se já não tivera o
prazer de
conhecê-la antes, em algum lugar. Naturalmente, respondeu ela, não se
lembra da plage em
Pornic?
Despertei imediatamente e pude então recordar-me com clareza de todos os
pormenores associados
com a
atraente visão do sonho.
O mesmo
autor [ibid., 306] (também citado por Vaschide, ibid., 233-4) conta como o
músico seu
conhecido
ouviu num sonho, certa vez, uma melodia que lhe pareceu inteiramente nova.
Só muitos anos depois
A Interpretação dos Sonhos I Sigmund
Freud
18
foi que ele
encontrou a mesma melodia numa velha coleção de peças musicais, embora
ainda assim não
pudesse
recordar-se de tê-la examinado algum dia.
Sei que
Myers [1892] publicou toda uma coletânea de sonhos hipermnésicos dessa
natureza nas
Atas da
Sociedade de Pesquisas Psíquicas, mas, infelizmente, não tenho acesso a
elas.Ninguém que se ocupe
de sonhos
pode, creio eu, deixar de descobrir que é fato muito comum um sonho dar
mostras de
conhecimentos
e lembranças que o sujeito, em estado de vigília, não está ciente de
possuir. Em meu trabalho
psicanalítico
com pacientes nervosos, do qual falarei mais adiante, tenho condições,
várias vezes por semana,
de provar
aos pacientes, com base em seus sonhos, que eles de fato estão bem
familiarizados com citações,
palavras
obscenas etc., e que as utilizam em seus sonhos, embora tenham-nas
esquecido em sua vida de
vigília.
Acrescentei mais um caso inocente de hipermnésia num sonho, em vista de
grande facilidade com que
foi possível
descobrir a fonte do conhecimento acessível apenas no
sonho.
Um de meus
pacientes, no decurso de um sonho bastante prolongado, sonhou que pedira
um
Kontuszówka quando se
encontrava num café. Depois de me dizer isso, perguntou-me o que era
um
Kontuszówka, pois
nunca ouvira esse nome. Pude responder-lhe que se tratava de um licor
polonês e que ele
não poderia
ter inventado esse nome, que há muito me era familiar pelos anúncios
afixados nos tapumes. De
início, ele
não me quis dar crédito, mas, alguns dias depois, após concretizar seu
sonho num café, notou o
nome num
tapume na esquina de uma rua pela qual devia ter passado pelo menos duas
vezes ao dia durante
vários
meses.
Eu mesmo
tenho observado, em relação a meu próprio sonho, o quanto é uma questão de
acaso
descobrir-se
ou não a fonte dos elementos específicos de um sonho. Assim é que, durante
anos, antes de
concluir
este livro, fui perseguido pela imagem de uma torre de igreja de desenho
muito simples, que eu não
lembrava ter
visto jamais. E então, de súbito, reconheci-a com absoluta certeza numa
pequena estação da linha
férrea entre
Salzburgo e Reichenhall. Isso ocorreu na segunda metade da década de 1890,
e eu viajara
naquela
linha pela primeira vez em 1896. Em anos a freqüente repetição, em meus
sonhos, da imagem de
determinado
lugar de aparência inusitada tornou-se para mim um verdadeiro incômodo.
Numa relação especial
específica
comigo, à minha esquerda, eu via um espaço escuro onde reluziam diversas
figuras grotescas de
arenito. Uma
vaga lembrança à qual eu não queria dar crédito dizia-me tratar-se da
entrada de uma cervejaria.
Mas não
consegui descobrir nem o significado do quadro onírico nem sua origem. Em
1907, ocorreu-me estar
em Pádua,
que, lamentavelmente, eu não pudera visitar desde 1895. Minha primeira
visita àquela encantadora
cidade
universitária fora uma decepção, pois eunão pudera ver os afrescos de
Giotto na Madonna dellArena.
Voltara a
meio caminho da rua que leva até lá ao ser informado de que a capela
estava fechada naquele dia.
Em minha
segunda visita, doze anos depois, resolvi compensar isso, e a primeira
coisa que fiz foi encaminharme
para a
capela da Arena. Na rua que conduz a ela, à minha esquerda e, com toda
probabilidade, no ponto do
qual
retornara em 1895, deparei com o lugar que tantas vezes vira em meus
sonhos, com as figuras de arenito
que faziam
parte dele. Era, de fato, o acesso ao jardim de um
restaurante.
Uma das
fontes de onde os sonhos retiram material para reprodução material que,
em parte, não é
nem
recordado nem utilizado nas atividades do pensamento de vigília é a
experiência da infância. Citarei
apenas
alguns dos autores que observaram e ressaltaram esse
fato.
A Interpretação dos Sonhos I Sigmund
Freud
19
Hildebrandt
(1875, 23): Já admiti expressamente que os sonhos às vezes trazem de
volta a nossas
mentes, com
um maravilhoso poder de reprodução, fatos muito remotos e até mesmo
esquecidos de nosso
primeiros
anos de vida.
Strümpell
(1877, 40): A posição é ainda mais notável quando observamos como os
sonhos por vezes
trazem à
luz, por assim dizer, das mais profundas pilhas de destroços sob as quais
as primeiras experiências da
meninice são
soterradas em épocas posteriores, imagens de localidades, coisas ou
pessoas específicas,
inteiramente
intactas e com todo o seu viço original. Isso não se limita às
experiências que criaram uma viva
impressão
quando ocorreram, ou que desfrutam de alto grau de importância psíquica e
retornaram depois, num
sonho, como
autênticas lembranças com as quais a consciência de vigília se regozija.
Ao contrário, as
profundezas
da memória, nos sonhos, também incluem imagens de pessoas, coisas,
localidades e fatos que
datam dos
mais remotos tempos, que nunca tiveram nenhuma importância psíquica ou
mais que um pálido grau
de nitidez
ou que há muito perderam o que teriam possuído de uma coisa ou de outra, e
que, por conseguinte,
parecem
inteiramente estranhos e desconhecidos tanto para a mente que sonha quanto
para a mente em
estado de
vigília, até que sua origem mais remota tenha sido
descoberta.
Volkelt
(1875, 119): É especialmente notável a facilidade com que as recordações
da infância e da
juventude
ganham acesso aos sonhos. Os sonhos continuamente nos relembram coisas em
que deixamos de
pensar e que
há muito deixaram de ser importantes para nós.
Como os
sonhos têm a seu dispor material oriundo da infância, e dado que, como
todos sabemos,
esse
material se acha obliterado, em sua maiorparte, por lacunas em nossa
faculdade consciente da memória,
essas
circunstâncias dão margem a curiosos sonhos hipermnésicos, dos quais, mais
uma vez, darei alguns
exemplos.
Maury (1878,
92) relata como, quando criança, costumava ir freqüentemente de Meaux, que
era seu
torrão
natal, à aldeia vizinha de Trilport, onde o pai supervisionava a
construção de uma ponte. Certa noite, num
sonho, ele
se viu em Trilport e, mais uma vez, brincava na rua da aldeia. Um homem,
envergando uma espécie
de uniforme,
dirigiu-se a ele. Maury perguntou-lhe como se chamava e ele respondeu que
seu nome era C., e
que era
vigia da ponte. Maury despertou com um sentimento de ceticismo quanto à
exatidão da lembrança, e
perguntou a
uma velha empregada, que estivera com ele desde sua infância, se ela
conseguia recordar-se de
um homem com
aquele nome. Mas é claro, foi a resposta, ele era o vigia da ponte
quando seu pai a estava
construindo.
Maury
(ibid., 143-4) fornece outro exemplo igualmente bem corroborado da
exatidão de uma
lembrança da
infância, surgida num sonho. O sonho ocorreu a um certo Monsieur F., que,
quando criança,
vivera
em Montbrison.
Vinte e cinco anos depois de partir dali, resolveu rever
a cidade natal e alguns amigos da
família que
não encontrara desde então. Na noite que precedeu sua partida, sonhou que
já estava em
Montbrison e
que, perto da cidade, encontrava um cavalheiro a quem não conhecia de
vista, mas que lhe dizia
ser
Monsieur T., um amigo
de seu pai. No sonho, Monsieur F. estava
ciente de que, quando criança, conhecera
alguém com
aquele nome, mas, em seu estado de vigília, não se lembrava mais da
aparência dele. Passados
alguns dias,
chegou realmente a Montbrison, achou o local que no sonho lhe parecera
desconhecido, e ali
encontrou um
cavalheiro que reconheceu imediatamente como o Monsieur T. do sonho.
A pessoa real, contudo,
aparentava
ser muito mais velha do que parecera no sonho.
A Interpretação dos Sonhos I Sigmund
Freud
20
Nesse ponto,
posso mencionar um sonho que eu mesmo tive, no qual o que tinha de ser
reconstruído
não era uma
impressão, mas uma ligação. Sonhei com alguém que, no sonho, eu sabia ser
o médico de minha
cidade
natal. Seu rosto era indistinto, mas se confundia com a imagem de um dos
professores da minha escola
secundária,
com quem ainda me encontro ocasionalmente. Quando acordei, não conseguia
descobrir que
ligação
haveria entre esses dois homens. Entretanto, fiz a minha mãe algumas
perguntas sobre esse médico
que
remontava aos primeiros anos de minha infância, e soube que ele tinha
apenas um olho. O professor cuja
fisionomia
se sobrepusera à do médico no sonho também só tinha uma vista. Fazia
trinta e oito anos que eu
vira o
médico pela última vez e, ao que eu sabia, nunca pensara nele em minha
vida de vigília, embora uma
cicatriz em
meu queixo pudesse ter-me feito recordar suas atenções para
comigo.
Diversos
autores, por outro lado, asseveram que na maioria dos sonhos se encontram
elementos
derivados
dos últimos dias antes de sua ocorrência; e isso parece ser uma tentativa
de contrabalançar a
excessiva
ênfase dada ao papel desempenhado na vida onírica pelas experiências da
infância. Assim, Robert
(1886, 46)
realmente declara que os sonhos normais, de modo geral, dizem respeito
apenas às impressões dos
últimos
dias. Verificaremos, porém, que a teoria dos sonhos elaborada por Robert
torna-lhe essencial destacar
as
impressões mais recentes, deixando fora de alcance as mais antigas. Não
obstante, o fato que ele afirma
permanece
correto, como posso confirmar por minhas próprias pesquisas. Um autor
norte-americano, Nelson
[1888, 380 e
seg.], é de opinião que as impressões mais freqüentemente empregadas num
sonho decorrem do
penúltimo ou
do antepenúltimo dia antes que o sonho ocorra como se as impressões do
dia imediatamente
anterior ao
sonho não fossem suficientemente atenuadas ou
remotas.
Vários
autores, preocupados em não lançar dúvidas sobre a íntima relação entre o
conteúdo dos
sonhos e a
vida de vigília, têm-se surpreendido com o fato de as impressões com que
os pensamentos de
vigília se
acham intensamente ocupados só aparecerem nos sonhos depois de terem sido
um tanto postas de
lado pelas
atividades do pensamento diurno. Assim, após a morte de um ente querido,
as pessoas em geral
não sonham
com ele logo de início, enquanto se acham dominadas pela dor (Delage,
1891, [40]). Por outro lado,
uma das mais
recentes observadoras, a Srta. Hallam (Hallam e Weed, 1896, 410-11),
coligiu exemplos em
contrário,
assim afirmando o direito de cada um de nós ao individualismo psicológico
nesse aspecto.
A terceira,
mais surpreendente e menos compreensível característica da memória nos
sonhos é
demonstrada
na escolha do material
reproduzido. Pois o que se considera digno de ser lembrado não é,
como
na vida de
vigília,apenas o que é mais importante, mas, pelo contrário, também o que
é mais irrelevante e
insignificante.
No tocante a este ponto, citarei os autores que deram expressão mais
vigorosa à sua
estupefação.
Hildebrandt
(1875, 11): Pois o fato notável é que os sonhos extraem seus elementos
não dos fatos
principais e
excitantes, nem dos interesses poderosos e imperiosos do dia anterior, mas
dos detalhes casuais,
do
fragmentos sem valor, poder-se-ia dizer, do que se vivenciou recentemente,
ou do passado mais remoto.
Uma morte na
família, que nos tenha comovido profundamente e sob cuja sombra imediata
tenhamos
adormecido
tarde da noite, é apagada de nossa memória até que, com nosso primeiro
momento de vigília,
retorna a
ela novamente com perturbadora violência. Por outro lado, uma verruga na
testa de um estranho que
vimos na
rua, e em quem não pensamos mais depois de passar por ele, tem um papel a
desempenhar em
nosso
sonho
A Interpretação dos Sonhos I Sigmund
Freud
21
Strümpell
(1877, 39): Há casos em que a análise de um sonho demonstra que alguns de
seus
componentes,
na realidade, provêm de experiências do dia precedente ou do dia anterior
a este, mas de
experiências
tão sem importância e tão triviais, do ponto de vista da consciência de
vigília, que foram
esquecidas
logo após sua ocorrência. As experiências dessa natureza incluem, por
exemplo, observações
acidentalmente
entreouvidas, ações desatentamente observadas de outra pessoa, vislumbres
passageiros de
pessoas ou
coisas, ou fragmentos isolados do que se leu, e assim por
diante.
Havelock
Ellis (1899, 77); As emoções profundas da vida de vigília, as questões e
os problemas
pelos quais
difundimos nossa principal energia mental voluntária, não são os que se
costumam apresentar de
imediato à
consciência onírica. No que diz respeito ao passado imediato, são
basicamente as impressões
corriqueiras,
casuais e esquecidas da vida cotidiana que reaparecem em nossos sonhos.
As atividades
psíquicas
mais intensamente despertas são as que dormem mais
profundamente.
Binz (1878,
44-5) efetivamente faz dessa peculiaridade específica da memória nos
sonhos uma
oportunidade
para expressar sua satisfação com as explicações dos sonhos que ele
próprio sustentou: E os
sonhos
naturais levantam problemas semelhantes. Por que nem sempre sonhamos com
as impressões
mnêmicas do
dia que acabamos de viver? Por que, muitas vezes, sem nenhum motivo
aparente, mergulhamos,
em vez
disso, no passado remoto e quase extinto? Por que a consciência, nos
sonhos, recebe com tanta
freqüência a
impressão de imagens mnêmicas indiferentes, enquanto
as células cerebrais, justamente onde
trazem as
marcas mais sensíveis do que se experimentou, permanecem, em sua maioria,
silenciosas e inertes,
a menosque
tenham sido incitadas a uma nova atividade pouco antes, durante a vida de
vigília?
É fácil
perceber como a notável preferência demonstrada pela memória, nos sonhos,
por elementos
indiferentes,
e conseqüentemente despercebidos da experiência de vigília está fadada a
levar as pessoas a
desprezarem,
de modo geral, a dependência que os sonhos têm da vida de vigília, e pelo
menos a dificultar, em
qualquer
caso específico, a comprovação dessa dependência. Assim, a Srta. Whiton
Calkis (1893, 315), em seu
estudo
estatístico de seus próprios sonhos e dos de seu colaborador, verificou
que em onze por cento do total
não havia
nenhuma conexão visível com a vida de vigília. Hildebrandt (1875, [12 e
seg.]) está indubitavelmente
certo ao
afirmar que seríamos capazes de explicar a gênese de todas as imagens
oníricas se dedicássemos
tempo e
empenho suficientes à investigação de sua origem. Ele se refere a isso
como uma tarefa
extremamente
trabalhosa e ingrata. Pois, em geral, termina por desenterrar dos mais
remotos pontos dos
compartimentos
da memória toda sorte de fatos psíquicos totalmente sem valor e por
arrastar à luz, mais uma
vez, do
esquecimento em que fora mergulhado talvez na primeira hora após sua
ocorrência, toda sorte de
momento
completamente irrelevante do passado. Só posso lamentar que esse autor de
aguda visão se tenha
deixado
impedir de seguir a trilha que teve esse começo inauspicioso; se a tivesse
seguido, ela o teria levado
ao próprio
cerne da explicação dos sonhos.
O modo como
a memória se comporta nos sonhos é, sem sombra de dúvida, da maior
importância
para
qualquer teoria da memória em geral. Ele nos ensina que
nada que tenhamos possuído mentalmente uma
vez pode se
perder inteiramente (Scholz, 1893, 59); ou, como o exprime Delboeuf
[1885, 115], que toute
impression,
même la plus insignifiante, laisse une trace inaltérable, indéfiniment
susceptible de reparaître au
jour. Essa
é uma conclusão a que também somos levados por muitos fenômenos
patológicos da vida mental.
Certas
teorias sobre os sonhos, que mencionaremos adiante, procuram explicar seu
absurdo e incoerência por
A Interpretação dos Sonhos I Sigmund
Freud
22
meio de um
esquecimento parcial do que sabemos durante o dia. Quando tivermos em
mente a extraordinária
eficiência
que acabamos de ver exibida pela memória nos sonhos, teremos um sentimento
vivo da contradição
que essas
teorias envolvem.
Talvez nos
ocorra que o fenômeno do sonhar possa ser inteiramente reduzido ao da
memória: os
sonhos,
poder-se-ia supor, são a manifestação de uma atividade reprodutiva que é
exercida mesmo durante a
noite e que
constitui um fim em si mesma. Isso se coadunaria com afirmações como as
que foram formuladas
por Pilcz
(1899), segundo as quais existe uma relação fixa observável entre o
momento em que um sonho
ocorre e seu
conteúdo, sendo as impressões do passado mais remoto reproduzidas nos
sonhos durante o sono
profundo,
enquanto as impressões mais recentes surgem ao amanhecer. Mas tais pontos
de vista são
intrinsecamente
improváveis, em vista da maneira como os sonhos lidam com o material a ser
lembrado.
Strümpell
[1877, 18] frisa, com razão, que os sonhos não reproduzem experiências.
Eles dão um passo à frente,
mas o
próximo passo da seqüência é omitido, ou aparece de forma alterada, ou é
substituído por algo
inteiramente
estranho. Os sonhos não produzem mais do que fragmentos de
reproduções; e isso constitui uma
regra tão
geral que nela é possível basear conclusões teóricas. É verdade que
existem casos excepcionais em
que um sonho
repete uma experiência tão completamente quanto está ao alcance de nossa
memória de vigília.
Delboeuf
[1885, 239 e seg.] conta-nos como um de seus colegas da universidade teve
um sonho que
reproduzia,
em todos os detalhes, um perigoso acidente de carruagem que ele sofrera,
do qual escapou quase
por milagre.
A Srta. Calkins (1893) menciona dois sonhos cujo conteúdo foi uma
reprodução exata de um
acontecimento
do dia anterior, e eu mesmo terei oportunidade, mais adiante, de relatar
um exemplo por mim
observado de
uma experiência infantil que reapareceu num sonho sem qualquer
modificação. [Ver em [1] [2] e
[3].]
(C) OS
ESTÍMULOS E AS FONTES DOS SONHOS
Há um ditado
popular que diz que os sonhos decorrem da indigestão, e isso nos ajuda a
entender o
que se
pretende dizer com estímulos e fontes dos sonhos. Por trás desses
conceitos há uma teoria segundo a
qual os
sonhos são o resultado de uma perturbação do sono: não teríamos um sonho a
menos que algo de
perturbador
acontecesse durante nosso sono, e o sonho seria uma reação a essa
perturbação.
Os debates
sobre as causas estimuladoras dos sonhos ocupam um espaço muito amplo na
literatura
sobre o
assunto. Obviamente, esse problema só poderia surgir depois de os sonhos
se terem tornado alvo de
pesquisas
biológicas. Os antigos, que acreditavam que os sonhos eram inspirados
pelos deuses, não
precisavam
ir em busca de seu estímulo: os sonhos emanavam da vontade de poderes
divinos ou demoníacos,
e seu
conteúdo provinha do conhecimento ou do objetivo desses poderes. A ciência
foi imediatamente
confrontada
com a questão de determinar se o estímulo ao sonho era sempre o mesmo ou
se haveria muitos
desses
estímulos; e isso envolvia a questão de a explicação das causas dos sonhos
se enquadrar no domínio
da
psicologia ou, antes, no da fisiologia. A maioria das autoridades parece
concordar na suposição de que as
causas que
perturbam o sono isto é, as fontes dos sonhos podem ser de muitas
espécies, e que tanto os
estímulos
somáticos quanto as excitações mentais podem vir a atuar como instigadores
dos sonhos. As
A Interpretação dos Sonhos I Sigmund
Freud
23
opiniões
diferem amplamente, contudo, na preferência demonstrada por uma ou outra
fonte dos sonhos e na
ordem de
importância atribuída a elas como fatores na produção dos
sonhos.
Qualquer
enumeração completa das fontes dos sonhos leva ao reconhecimento de quatro
tipos de
fonte, e
estes também têm sido utilizados para a classificação dos próprios sonhos.
São eles: (1) excitação
sensoriais
externas (objetivas); (2) excitações sensoriais internas (subjetivas); (3)
estímulos somáticos internos
(orgânicos);
e (4) fontes de estimulação puramente psíquicas.
(C) 1.
ESTÍMULOS SENSORIAIS EXTERNOS
O jovem
Strümpell [1883-4; trad. ingl. (1912, 2, 160), filho do filósofo cujo
livro sobre os sonhos já nos
deu várias
idéias acerca dos problemas oníricos, publicou um célebre relato de suas
observações sobre um de
seus
pacientes, que sofria de anestesia geral da superfície do corpo e
paralisia de vários de seus órgãos
sensoriais
superiores. Quando se fechava o pequeno número de canais sensoriais desse
homem que
permaneciam
abertos ao mundo exterior, ele adormecia. Ora, quando nós mesmos desejamos
dormir, temos o
hábito de
tentar produzir uma situação semelhante à da experiência de Strümpell.
Fechamos nossos canais
sensoriais
mais importantes, os olhos, e tentamos proteger os outros sentidos de
todos os estímulos ou de
qualquer
modificação dos estímulos que atuam sobre eles. Então adormecemos, muito
embora nosso plano
jamais se
concretize inteiramente. Não podemos manter os estímulos completamente
afastados de nossos
órgãos
sensoriais, nem podemos suspender inteiramente a excitabilidade de nossos
órgãos dos sentidos. O
fato de um
estímulo razoavelmente poderoso nos despertar a qualquer momento é prova
de que, Mesmo no
sono, a alma
está em constante contato com o mundo extracorporal. Os estímulos
sensoriais que chegam até
nós durante
o sono podem muito bem tornar-se fontes de
sonhos.
Ora, há
inúmeros desses estímulos, que vão desde os inevitáveis, que o próprio
estado de sono
necessariamente
envolve ou precisa tolerar de vez em quando, até os eventuais, que
despertam estímulos que
podem pôr,
ou de fato põem, termo ao sono. Uma luz forte pode incidir sobre os olhos,
ou um ruído pode se
fazer ouvir,
ou alguma substância de odor pronunciado poderá estimular a membrana
mucosa do nariz. Por
movimentos
involuntários durante o sono, podemos descobrir alguma parte do corpo e
expô-lo a sensações de
frio, ou,
mediante uma mudança de posição, podemos provocar sensações de pressão ou
contato. É possível
que sejamos
picados por um mosquito, ou algum pequeno incidente durante a noite talvez
afete vários dos
nossos
sentidos ao mesmo tempo. Alguns observadores atentos coligiram toda uma
série de sonhos em que
houve uma
correspondência tão grande entre um estímulo constatado ao despertar e uma
parte do conteúdo do
sonho que
foi possível identificar o estímulo como a fonte do
sonho.
Citarei, de
autoria de Jessen (1855, 527 e seg.), uma série desses sonhos, que podem
ser ligados a
uma
estimulação sensorial objetiva e mais ou menos
acidental.
Todo ruído
indistintamente percebido provoca imagens oníricas correspondentes. Uma
trovoada nos
situa em
meio a uma batalha; o cantar de um galo pode transmudar-se no grito de
terror de um homem; o
ranger de
uma porta pode produzir um sonho com ladrões. Se os lençóis da cama caírem
durante a noite,
talvez
sonhemos que estamos andando nus de um lado para outro, ou então caindo
nágua. Se estivermos
atravessados
na cama e com os pés para fora da beirada, talvez sonhemos que estamos à
beira de um
A Interpretação dos Sonhos I Sigmund
Freud
24
tremendo
precipício ou caindo de um penhasco. Se a cabeça ficar debaixo do
travesseiro, sonharemos estar
debaixo de
uma pedra enorme, prestes a nos soterrar sob seu peso. Os acúmulos de
sêmen provocam sonhos
lascivos e
as dores locais produzem idéias de estarmos sendo maltratados, atacados ou
feridos
Meier
(1758, 33) sonhou, certa feita, que era dominado por alguns homens que o
estendiam de
costas no
chão e enfiavam uma estaca na terra entre seu dedão do pé e o dedo ao
lado. Enquanto imaginava
essa cena no
sonho, acordou e verificou que havia um pedaço de palha entre seus dedos.
Em outra ocasião,
segundo
Hennings (1784, 258), quando Meier apertara muito o colarinho da roupa de
dormir no pescoço,
sonhou que
estava sendo enforcado. Hoffbaeur (1796, 146) sonhou, quando jovem, que
estava caindo de um
muro alto, e
ao acordar, viu que a armação da cama desabara e ele realmente caíra no
chão
Gregory relata
que, certa
vez, quando estava com os pés num saco de água quente, sonhou ter subido
até o cume do Monte
Etna, onde o
chão esta insuportavelmente quente. Outro homem, que dormia com um
cataplasma quente na
cabeça,
sonhou que estava sendo escalpelado por um bando de peles-vermelhas,
enquanto um terceiro, que
usava uma
camisa de dormir úmida, imaginou que estava sendo arrastado por uma
correnteza. Um ataque de
gota
repentinamente surgido durante o sono levou um paciente a acreditar que
estava nas mãos da Inquisição
e sendo
torturado no cavalete (Macnisch [1835, 40]).
O argumento
baseado na semelhança entre o estímulo e o conteúdo do sonho se fortalece
quando é
possível
transmitir deliberadamente um estímulo sensorial à pessoa adormecida e
nela produzir um sonho
correspondente
àquele estímulo. De acordo com Macnisch (loc. cit.), citado por Jessen
(1855, 529),
experimentos
dessa natureza já foram feitos por Girou de Buzareingues [1848, 55]. Ele
deixara o joelho
descoberto e
sonhou que estava viajando de noite numa diligência. A esse respeito, ele
observa que os
viajantes
porcerto estão cientes de como os joelhos ficam frios à noite num coche.
Noutra ocasião, ele deixou
descoberta a
parte posterior da cabeça e sonhou que estava participando de uma
cerimônia religiosa ao ar livre.
Cabe
explicar que, no país onde morava, era costume manter sempre a cabeça
coberta, exceto em
circunstâncias
como essas.
Maury (1878,
[154-6]) apresenta algumas novas observações sobre sonhos produzidos nele
mesmo.
(Diversos
outros experimentos foram mal-sucedidos.)
(1) Alguém
fez cócegas em seus lábios e na ponta do nariz com uma pena. Ele sonhou
com uma
forma
medonha de tortura: uma máscara de piche ora colocada em seu rosto e
depois puxada, arrancando-lhe
a
pele.
(2) Alguém
afiou uma tesoura num alicate. Ele ouviu o repicar de sinos, seguido por
sinais de
alarma, e se
viu de volta aos dias de junho de 1848.
(3)
Deram-lhe água-de-colônia para cheirar. Ele se viu no Cairo, na loja de
Johann Maria Farina.
Seguiram-se
algumas aventuras absurdas que ele não soube
reproduzir.
(4)
Beliscaram-lhe levemente o pescoço. Ele sonhou que lhe aplicavam um
emplastro de mostarda
e pensou no
médico que o tratara quando criança.
(5)
Aproximaram um ferro quente de seu rosto. Sonhou que os chauffeurs haviam
penetrado na
casa e
forçavam seus moradores a dar-lhes dinheiro, enfiando-lhes os pés
em braseiros.
Apareceu então a
Duquesa de
Abrantes, de quem ele era secretário no sonho.
A Interpretação dos Sonhos I Sigmund
Freud
25
(8) Pingaram
uma gota dágua em sua testa. Ele estava na Itália, suava violentamente
e bebia
vinho branco
de Orvieto.
(9) Fez-se
com que a luz de uma vela brilhasse repetidamente sobre ele através de uma
folha de
papel
vermelho. Sonhou com o tempo e com o calor, e se viu novamente numa
tempestade que enfrentara
no Canal da
Mancha.
Outras
tentativas de produzir sonhos experimentalmente foram relatadas por Hervey
de Saint-Denys
[1867, 268 e
seg. e 376 e seg.], Weygandt (1893) e outros.
Muitos
autores teceram comentários sobre a notável facilidade com que os sonhos
conseguem
enfrentar
uma impressão súbita vinda do mundo dos sentidos em sua própria estrutura,
de modo que esta
surge sob a
aparência de uma catástrofe previamente preparada a que se chegou
gradativamente
[(Hildebrandt,
1875, [36])]. Em minha juventude, prossegue esse autor, eu costumava
usar um despertador
para me
levantar regularmente numa determinada hora. Por centenas de vezes deve
ter acontecido de o ruído
produzido
por esse instrumento se enquadrar num sonho aparentemente único e tivesse
alcançado seu fim
precípuo no
que era clímax logicamente indispensável. [Ibid.,
37.]
Citarei três
desses sonhos despertadores, agora num outro sentido. [Ver em.
[1]-[2]]
Volket
(1875, 108 e seg.) escreve: Um compositor, certa feita, sonhou que estava
dando uma aula e
tentando
esclarecer determinado ponto a seus alunos. Quando acabou de fazê-lo,
voltou-se para um dos
meninos e
perguntou-lhe se havia entendido. Este respondeu-lhe aos gritos, como um
possesso: Oh ja!
[Oh,
sim!]. Ele
começou a repreender o menino asperamente por estar gritando, mas toda a
classe irrompeu em
gritos,
primeiro de Orja!, depois
de Eurjo! e
finalmente de Feuerjo!Neste
ponto ele foi despertado por gritos
reais de
Feurjo! na
rua.
Garnier
(1872, [1, 476]) conta como Napoleão I foi despertado pela explosão de uma
bomba
enquanto
dormia em sua carruagem. Sonhou que estava novamente atravessando o
Tagliamento sob o
bombardeio
austríaco, e por fim, sobressaltado, acordou gritando: Estamos
perdidos!
Um sonho de
Maury (1878, 161) tornou-se famoso. Estava doente e de cama em seu quarto,
com a
mãe sentada
a seu lado, e sonhou que estava no Reinado do Terror. Após testemunhar
diversas cenas
pavorosas de
assassinato, foi finalmente levado perante o tribunal revolucionário. Lá
viu Robespierre, Marat,
Fouquier-Tinville
e o resto dos soturnos heróis daqueles dias terríveis. Foi interrogado por
eles, e depois de
alguns
incidentes que não guardou na memória, foi condenado e conduzido ao local
de execução, cercado por
uma multidão
enorme. Subiu ao cadafalso e foi amarrado à prancha pelo carrasco. A
guilhotina estava
preparada e
a lâmina desceu. Ele sentiu a cabeça sendo separada do corpo, acordou em
extrema angústia
eviu que a
cabeceira da cama caíra e lhe atingira as vértebras cervicais, tal como a
lâmina da guilhotina as teria
realmente
atingido.
Esse sonho
constituiu a base de um interessante debate entre Le Lorain (1894) e Egger
(1895) na
Revue philosophique. A questão
levantada foi se e como era possível que alguém, ao sonhar, condensasse
tal
quantidade
de material aparentemente superabundante, no curto período transcorrido
entre a percepção do
estímulo
emergente e o despertar.
Os exemplos
dessa natureza deixam a impressão de que, de todas as fontes dos sonhos,
as mais
bem
confirmadas são os estímulos sensoriais objetivos durante o sono. Além
disso, eles constituem
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Freud
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rigorosamente
as únicas fontes levadas em conta pelos leigos. Quando se pergunta a um
homem culto, que
não esteja
familiarizado com a literatura dos sonhos, como é que estes surgem, ele
responde infalivelmente
com uma
referência a algum exemplo de seu conhecimento em que um sonho tenha sido
explicado por um
estímulo
sensorial objetivo descoberto após o despertar. A investigação científica,
contudo, não pode parar aí.
Ela encontra
uma oportunidade de formular outras perguntas no fato observado de que o
estímulo que incide
sobre os
sentidos durante o sono não aparece no sonho em sua forma real, mas é
substituído por outra
imagem que,
de algum modo, está relacionada com ele. Todavia, a relação que liga o
estímulo do sonho ao
sonho que
dele resulta é, para citarmos as palavras de Maury (1854, 72), une
affinité quelconque, mais qui
nest pas
unique et exclusive. Consideremos, a esse respeito, três dos sonhos de
Hildebrandt com
despertadores
(1875, 37 e seg.). A questão que eles levantam é porque o mesmo estímulo
teria provocado três
sonhos tão
diferentes, e porque teria provocado estes, e não
outros.
Sonhei,
então, que, numa manhã de primavera, eu estava passeando e caminhando
pelos campos
verdejantes,
quando cheguei a uma aldeia vizinha, onde vi os aldeões em seus melhores
trajes, com livros de
hinos
debaixo do braço, afluindo para a igreja em bandos. Claro! Era
domingo, e o serviço religioso matutino
logo estaria
começando. Resolvi participar dele, mas primeiro, como estava sentindo
calor por causa da
caminhada,
fui até o cemitério que circundava a igreja para me refrescar. Enquanto
lia algumas das inscrições
das lápides,
ouvi o sineiro subindo para a torre da igreja e, no alto da mesma, vi
então o sino do vilarejo, que
logo daria o
sinal para o começo das preces. Por um bom tempo, lá ficou imóvel, e
depois começoua balançar,
e de
repente, seu repicar passou a soar de maneira nítida e penetrante tão
nítida e penetrante que pôs termo
a meu sono.
Mas o que estava tocando era meu despertador.
Eis aqui
outro exemplo. Fazia um dia claro de inverno e as ruas estavam cobertas
por uma espessa
camada de
neve. Eu havia concordado em participar de um grupo para um passeio de
trenó, mas tive de
esperar
muito tempo antes de chegar a notícia de que o trenó se achava à porta.
Seguiram-se então os
preparativos
para entrar o tapete de pele foi estendido, ajeitou-se o agasalho para
os pés e finalmente
ocupei meu
lugar. Mas, ainda assim, o momento da partida foi retardado, até que um
puxão nas rédeas deu aos
cavalos, que
esperavam, o sinal da partida. Eles partiram e, com uma violenta
sacudidela, os pequenos guizos
do trenó
começaram a produzir seu conhecido tilintar com tal violência, de fato,
que num instante se rompeu
a fina teia
de meu sonho. E, mais uma vez, era apenas o som estridente do
despertador.
E agora, um
terceiro exemplo. Eu olhava para uma copeira que ia levando várias dúzias
de pratos
empilhados
uns sobre os outros, andando pelo corredor que dava para a sala de jantar.
A pilha de louça em
seus braços
me pareceu prestes a perder o equilíbrio. Cuidado, exclamei, (senão
você vai deixar cair tudo!.
Seguiu-se,
como de praxe, a inevitável resposta: ela estava acostumada àquele tipo de
trabalho, e assim por
diante.
Entrementes, meu olhar ansioso seguia a figura que avançava. E então
justamente como eu
esperava
ela tropeçou na soleira da porta e a frágil louça escapuliu e, numa
verdadeira sinfonia de ruídos,
espatifou-se
em mil pedaços no chão. Mas o barulho prosseguiu sem cessar, e logo já não
parecia ser
estrondoso
retinir da louça se quebrando; começou a se transformar no som de uma
campainha e essa
campainha,
como agora percebia meu eu desperto, era apenas o despertador cumprindo
seu dever.
A questão de
por que a mente confunde a natureza dos estímulos sensoriais objetivos nos
sonhos
recebe quase
a mesma resposta de Strümpell (1877, [103]) e de Wundt (1874, 659 e seg.):
a mente recebe
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estímulos
que a alcançam durante o sono sob condições favoráveis à formação de
ilusões. Uma impressão
sensorial é
reconhecida por nós e corretamente interpretada isto é, é situada no
grupo de lembranças a que,
de acordo
com todas as nossas experiências, ela pertence contanto que a impressão
seja suficientemente
forte,
nítida e duradoura, e contanto que tenhamos tempo suficiente a nosso
dispor para considerar o assunto.
Se essas
condições não forem satisfeitas, confundiremos o objeto que é a fonte da
impressão: formaremos uma
ilusão sobre
ele. Se alguém fizer uma caminhada pelo campo e tiver uma percepção
indefinida de umobjeto
distante,
poderá a princípio pensar que se trata de um cavalo. Vendo mais de perto,
poderá ser levado a
interpretá-la
como uma vaca deitada, e a imagem poderá finalmente transformar-se em
definitivo num grupo de
pessoas
sentadas no chão. As impressões de estímulos exteriores recebidas pela
mente durante o sono são de
natureza
similarmente vaga; e com base nisso, a mente cria alusões, visto que um
número maior ou menor de
imagens
mnêmicas é despertado pela impressão, e é através destas que ela adquire
seu valor psíquico. De
qual dos
numerosos grupos de lembranças em causa as imagens correlatas serão
despertadas, e qual das
possíveis
conexões associativas será por conseguinte posta em ação também essas
questões, segundo a
teoria de
Strümpell, são indetermináveis e ficam, por assim dizer, abertas à decisão
arbitrária da mente.
Nesta
altura, defronta-se-nos uma escolha entre duas alternativas. Podemos
admitir como um fato
que é
impossível examinar ainda mais as leis que regem a formação dos sonhos; e
podemos,
conseqüentemente,
deixar de inquirir se haverá ou não outros determinantes que regem a
interpretação
atribuída
por aquele que sonha à ilusão evocada pela impressão sensorial. Ou, por
outro lado, podemos
suspeitar de
que o estímulo sensorial que atinge o sujeito adormecido desempenha apenas
um modesto papel
na geração
de seu sonho, e que outros fatores determinam a escolha das imagens
mnêmicas que nele serão
despertadas.
De fato, se examinarmos os sonhos experimentalmente produzidos de Maury
(que relatei com tal
riqueza de
detalhes exatamente por esse motivo), seremos tentados a dizer que o
experimento, de fato, explica
a origem de
apenas um elemento dos sonhos; o restante de seu conteúdo parece autônomo
demais e
excessivamente
definido em seus detalhes para ser explicável apenas pela necessidade de
se ajustar ao
elemento
experimentalmente introduzido de fora. De fato, começa-se a ter dúvidas
sobre a teoria das ilusões e
o poder das
impressões objetivas de darem forma aos sonhos, quando se verifica que
essas impressões, por
vezes, estão
sujeitas, nos sonhos, às mais peculiares e exageradas interpretações.
Assim, Simon (1888) relatanos
um sonho no
qual via algumas figuras gigantescas sentadas à mesa, e ouvia
distintamente o pavoroso som
do estalido
produzido pelo fechamento de suas mandíbulas ao mastigarem. Quando
despertou, ouviu o barulho
dos cascos
de um cavalo que passava a galope por sua janela. O ruído feito pelos
cascos do cavalo talvez
tenha
sugerido idéias provenientes de um grupo de lembranças ligadas às
Viagens de Gulliver os
gigantes
de
Brobdingnag e o virtuoso Houyhnhnms se é que posso arriscar uma
interpretação sem a ajuda do autor
do sonho.
Não será provável, portanto, que a escolha de um grupo tão inusitado de
lembranças como esse
tenha sido
facilitada por motivos outros que não apenas o estímulo
objetivo?
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